Introdução
O processo do trabalho é “a sequência de actos destinados à uma justa composição de um conflito de interesses (litígios) privados, relativos à disciplina do trabalho ou com ele conexos, mediante a intervenção de um órgão imparcial de autoridade, o tribunal”[1].
Por sua vez, o Direito do Processo do Trabalho é um ramo do direito público, constituído por um conjunto de princípios e normas que regulam o processo do trabalho.
O Direito do Processo do Trabalho surgiu perante a especial necessidade de adjectivação do Direito do Trabalho, face a relevância que ganhou o fenómeno do trabalho subordinado após a Revolução Industrial e à ineficácia do Direito Civil para resolver alguns problemas laborais em concreto e para compensar genericamente a situação de debilidade económica e jurídica do trabalhador subordinado[2].
Em Moçambique, o Direito do Processo do Trabalho remonta ao período colonial, no qual Moçambique era Província Ultramarina de Portugal, sendo Moçambique parte do Ultramar e Portugal a Metrópole. Neste período, o Direito do Processo do Trabalho tem como seu marco a Portaria nº 10698, de 6 de Julho de 1944, que mandou aplicar ao Ultramar o Decreto-Lei nº 31464, de 12 de Agosto de 1941, que aprovou o Código de Processo nos Tribunais de Trabalho (CPTT), então em vigor na Metrópole. O código em referência foi posteriormente substituído pelo Código do Processo do Trabalho (CPT), aprovado pelo Decreto-Lei nº 45497, de 30 de Dezembro de 1963, e mandado aplicar ao Ultramar pela Portaria nº 87/70, de 2 de Fevereiro, com as alterações exigidas pelas suas condições particulares e pela sua orgânica judiciária.
Após a independência de Moçambique, o CPT foi objecto de várias alterações, na sequência da aprovação de vários diplomas que regularam especialmente certas matérias do processo de trabalho, designadamente o Decreto nº 14/75, de 11 de Setembro (que criou as Comissões de Trabalho), a Lei nº 18/92, de 14 de Outubro (que cria os Tribunais de Trabalho e revoga o Decreto nº 14/75, de 11 de Setembro), a Lei nº 10/2018, de 30 de Agosto (que estabelece o novo regime dos Tribunais de Trabalho e revoga a Lei nº 18/92, de 14 de Outubro) e a Lei nº 4/2021, de 5 de Maio (que altera e republica a Lei nº 10/2018).
O recurso de apelação e a caução estão entre as várias matérias reguladas no nosso Direito do Processo do Trabalho, corporizado pelas leis em referência, cujo regime foi se metamorfoseando com as alterações a que foram objecto, marcando, “de certa forma”, a sua evolução, mormente, em relação à sua admissibilidade, à exigibilidade e aos efeitos da caução sobre a decisão recorrida.
Pelo que, o estudo do recurso de apelação e da caução no processo do trabalho, atendendo ao seu surgimento e evolução, mostra-se importante para melhor interpretarmos o sentido e efeitos do actual regime, na medida em que se reflectirá no seu melhor manuseamento pelos profissionais do foro, no geral, e na sua melhor aplicação pelos magistrados judiciais, em especial, materializando o espírito legislativo e/ou salvaguardando os interesses subjacentes à sua instituição pelo legislador.
Por conseguinte, nos desafiamos a embarcar no estudo em referência, o qual está dividido em dois momentos, designadamente (I) o conceito, contexto do surgimento e evolução do recurso de apelação e da caução no nosso processo do trabalho, e (II) o regime jurídico do recurso de apelação e da caução no processo do trabalho. A seguir a estes momentos, apresentamos a conclusão.
I. Conceito, contexto do surgimento e evolução do recurso de apelação e da caução no nosso processo do trabalho
I.1. Conceito do recurso de apelação e da caução
I.1.1. Conceito do recurso de apelação
O recurso de apelação é um meio de impugnação destinado à eliminação ou correcção de uma decisão judicial inválida, errada ou injusta por devolução do seu julgamento ao órgão jurisdicional hierarquicamente superior[3].
I.1.2. Conceito de caução
A caução é “uma garantia especial das obrigações que pode ser imposta ou permitida por lei, decisão judicial ou convenção, relativamente a uma obrigação futura ou de objecto não determinado”[4].
I.2. Contexto do surgimento e evolução
O recurso de apelação e a caução surgiram no nosso processo do trabalho no contexto da extensão da aplicação do CPTT ao Ultramar, que, por sua vez, marcou o surgimento do Direito do Processo do Trabalho no mesmo (Ultramar). O CPTT estabeleceu a admissibilidade do recurso de apelação, com o efeito meramente devolutivo, nos seus artigos 42º e 43º. Estas disposições não previam a susceptibilidade de atribuição do efeito suspensivo ao recurso de apelação através da prestação da caução. A caução foi prevista no âmbito da homologação, por sentença, de acordos extrajudiciais ou certidões de autos de conciliação, entre outros, referentes aos processos de acidentes de trabalho e doenças profissionais, numa perspectiva que nos remete à finalidade de garantir os seus termos (artigo 69º do CPTT).
Contudo, a Portaria nº 10698, de 6 de Julho de 1944, que estendeu a aplicação do CPTT ao Ultramar, excluiu a sua aplicação aos processos em que algum dos litigantes fosse indígena[5], sendo apenas aplicável aos processos em que fossem litigantes os não indígenas[6] e o respectivo empregador.
O tratamento discriminatório entre os chamados indígenas e não indígenas só cessou com a aprovação e entrada em vigor do Decreto-Lei nº 43893, de 6 de Setembro de 1961, que revogou o Estatuto dos Indígenas Portugueses, aprovado pelo Decreto-Lei nº 39666, de 20 de Maio de 1954, na sequência deste (último) ter alterado o Decreto nº 16473, de 6 de Fevereiro de 1929.
Por conseguinte, o CPTT foi substituído pelo CPT, que foi tornado extensivo ao Ultramar pela Portaria nº 87/70, de 2 de Fevereiro, com as alterações exigidas pelas suas condições particulares e pela sua orgânica judiciária.
O CPT veio manter a admissibilidade do recurso de apelação e o seu efeito meramente devolutivo, prevendo, adicionalmente, no seu artigo 79º/1, a faculdade de o apelante obter o efeito suspensivo, mediante a prestação de caução no valor equivalente ao que foi condenado, no prazo de 30 dias a partir da notificação da sentença.
Pouco depois da independência de Moçambique, o CPT foi alterado pelo Decreto nº 14/75, de 11 de Setembro, que criou as Comissões de Trabalho para a solução de questões individuais de trabalho e das resultantes de doenças profissionais e acidentes de trabalho. Na sequência disso, o CPT passou a aplicar se aos casos omissos do referido decreto e aos recursos pendentes (artigos 1º e 29º do Decreto nº 14/75). Em matéria de recurso, o Decreto nº 14/75 apenas admitia recurso das deliberações que impunham obrigações de carácter patrimonial, nos termos do seu artigo 4º/3 e, em face do disposto no seu artigo 10º[7], podemos assumir que a interposição do recurso, dentro do prazo legal, produzia efeito suspensivo sobre a decisão recorrida, sem necessidade de prestação de caução.
O Decreto nº 14/75 foi revogado pela Lei nº 18/92, de 14 de Outubro, que criou os Tribunais de Trabalho, à qual, também, passaram a serem aplicáveis subsidiariamente as disposições do CPT. A Lei nº 18/92 obrigou à prestação de caução para a inexequibilidade da decisão, o que, conjugado com as disposições do CPT, nos remete ao mesmo regime vigente (sobre a matéria) antes da entrada em vigor do Decreto nº 14/75.
Contudo, a Lei nº 18/92 foi revogada pela Lei nº 10/2018, de 30 de Agosto, que veio: por um lado, manter o efeito devolutivo do recurso de apelação, quando não tenha sido prestada caução pelo recorrente, no prazo de 30 dias do trânsito em julgado da decisão (artigos 36/3, 37 e 44 da Lei nº 10/2018 conjugado com o artigo 79º/1 do CPT); por outro lado, estabelecer que, nos casos em que não tenha sido prestada caução no recurso de apelação, o tribunal ordena a penhora dos bens do recorrente, necessários para pagar a dívida, contanto que a parte contrária ou o recorrido tenha prestado caução idêntica e idónea (artigos 36/3, 37 e 44 da Lei nº 10/2018 conjugado com o artigo 79º/1 do CPT).
A Lei nº 10/2018 veio a ser alterada pela Lei nº 4/2021, 5 de Maio, que, essencialmente, manteve o seu regime, eliminando apenas o termo “idêntica” no artigo 36/3.
II. Regime do recurso de apelação e da caução no processo do trabalho
II.1. Status quo do regime do recurso de apelação e da caução no processo do trabalho
Face ao contexto do surgimento e evolução que abordamos no ponto I.2 acima, podemos, com segurança, afirmar que o status quo do regime do recurso de apelação e da caução tem, essencialmente, como instrumentos de base a Lei nº 10/2018, a Lei nº 4/2021 e o CPT.
Contudo, no regime em questão, o artigo 36 da Lei nº 4/2021, se interpretado literalmente, pode nos induzir erroneamente à conclusão de o mesmo abordar exclusivamente as consequências da falta do cumprimento das obrigações, quando a fixação do seu sentido e alcance, atendendo à unidade do nosso sistema jurídico [artigo 9º do Código Civil (CC)], vai para além disso, pois:
i) Por um lado, dispõe, no seu nº 3, que “No caso de não ter sido prestada caução e não fixado o efeito suspensivo…”, o que nos remete aos casos de uma decisão que tenha sido objecto de recurso, nos termos estabelecidos nos artigos 74º e seguintes do CPT, porque só faria sentido que se exigisse a prestação de caução e a fixação do efeito suspensivo sobre uma decisão que tenha sido objecto de recurso, atendendo que, apenas nestes casos, existem efectivos interesses a proteger pela parte que deve prestá-la.
ii) Por outro lado, a disposição do nº 3 em questão, abrange não apenas o recurso de apelação, mas todos os outros recursos, porque só assim faria sentido a referência “No caso de não ter sido prestada caução e não fixado o efeito suspensivo…”, na medida em que nos remete ao recurso cujo efeito suspensivo pode ser fixado mesmo sem prestação de caução, que não é o caso do recurso de apelação cujo efeito é meramente devolutivo e sem necessidade de declaração, nessas circunstâncias, nos termos do artigo 79º/1 do CPT.
Por conseguinte, para o presente estudo, teremos em consideração que a disposição do artigo 36º/3 da Lei nº 4/2021 versa sobre a falta do cumprimento das obrigações que tenham sido objecto de recurso, abrangendo não apenas o de apelação.
Posto isto, podemos, também, afirmar que, no regime actualmente em vigor, o recurso de apelação tem efeito meramente devolutivo, sem necessidade de declaração, podendo o recorrente obter o efeito suspensivo se, no prazo de trinta dias, a partir da notificação da sentença, prestar caução da importância em que foi condenado (artigo 79º/1 do CPT conjugado com os artigos 36/3, 37 e 44 da Lei nº 10/2018, com as alterações introduzidas pela Lei nº 4/2021).
Nos casos em que não tenha sido prestada caução no recurso de apelação, o tribunal ordena a penhora dos bens do recorrente, necessários para pagar a dívida, desde que a parte contrária tenha prestado caução idónea (artigos 36/3, 37 e 44 da Lei nº 10/2018, com as alterações introduzidas pela Lei nº 4/2021, conjugado com o artigo 79º/1 do CPT).
II.2. Ratio legis subjacente ao regime do recurso de apelação e da caução no processo do trabalho
O Estado garante ao cidadão o direito de impugnar os actos que violam os seus direitos estabelecidos na Constituição e nas demais leis [artigo 69 da Constituição da República de Moçambique (CRM)].
O recurso contra as decisões judiciais, no geral, e o recurso de apelação contra as decisões dos Tribunais de Trabalho, em especial, são instrumentos para a materialização do direito de impugnação, através dos quais o recorrente provoca a reapreciação das referidas decisões, com a finalidade de correcção de defeitos ou vícios resultantes de alguma ilegalidade, erro ou injustiça da mesma[8].
Em contraposição ao direito de impugnação, está o direito do cidadão de recorrer aos tribunais contra os actos que violem os seus direitos e interesses reconhecidos pela Constituição e pela lei (artigo 70 da CRM).
As acções judiciais, em geral, e as acções laborais, em especial, são os instrumentos para a materialização do direito de recorrer aos tribunais, que, uma vez instauradas, desencadeiam uma serie de actos processuais que culminam com uma decisão.
Com a decisão judicial emergem dois interesses: por um lado, o interesse da parte a favor da qual foi decidida a acção, que se traduz em lograr a materialização do cumprimento da decisão; por outro lado, o interesse da parte contra a qual foi decida a acção que, não concordando com a decisão, é de provocar a sua reapreciação.
Daí, o legislador instituiu a caução que, sem pôr em causa os interesses das partes, permite: por um lado, que a parte contra a qual foi proferida uma decisão (que lhe imponha a prestação de uma obrigação de carácter patrimonial) provoque a sua reapreciação através do recurso e suspenda os seus efeitos, prestando-a; por outro lado, que a parte a favor da qual foi proferida a decisão (que lhe conceda o direito a uma prestação de carácter patrimonial) provoque a sua execução provisória, prestando-a.
Portanto, podemos dizer que, com a instituição do regime do recurso de apelação e da caução em questão, o legislador quis estabelecer um equilíbrio entre as partes face: ao direito que é concedido à parte condenada de recorrer da decisão condenatória (que obrigue a uma prestação de carácter patrimonial), exigindo que, caso a mesma pretenda obter efeito suspensivo, preste caução, para garantir o cumprimento da obrigação se a mesma (decisão) vier a ser mantida nas instâncias superiores; ao direito que é concedido à parte vencedora de obter a execução provisória da decisão recorrida (que obrigue a uma prestação de carácter patrimonial), impondo, para esse desiderato, que a mesma preste caução, para garantir a devolução do valor executado provisoriamente se a decisão vier a ser alterada pelas instâncias superiores.
O equilíbrio em questão tem cobertura constitucional, atendendo aos direitos que o Estado confere aos cidadãos de recorrer aos tribunais e de impugnar os actos que lesem os seus interesses, nos termos acima referidos, e aos quais remetemos por razões de economia de tempo (artigo 69 e 70 da CRM).
Pelo que, a atribuição do efeito suspensivo ao recurso de apelação (sobre uma decisão que obrigue a uma prestação de carácter patrimonial), sem que o recorrente tenha prestado caução ou a execução provisória de uma decisão recorrida (que insira uma obrigação de carácter patrimonial), sem que o exequente tenha prestado caução, constituem uma violação da lei processual e, portanto, irregularidades processuais susceptíveis de provocar danos patrimoniais na esfera jurídica das partes, senão vejamos:
i) Atribuição do efeito suspensivo ao recurso de apelação sem prestação de caução
A atribuição do efeito suspensivo ao recurso de apelação sem que o recorrente tenha prestado caução impede o recorrido de executar provisoriamente a decisão, prestando caução.
Portanto, o recorrido fica impedido de previamente onerar o património do recorrente, no valor equivalente ao que fora condenado, para garantir a satisfação do seu crédito no caso de a decisão vir a ser confirmada pelas instâncias superiores.
Se, durante o período compreendido entre a atribuição do efeito suspensivo do recurso (sem a prestação da caução pelo recorrente) até a confirmação da decisão pelas instâncias superiores, o recorrente dissipar ou ocultar o seu património, furtando-se, com sucesso, ao pagamento do valor a que fora condenado, o recorrido ficará impedido de satisfazer o seu crédito. Esta situação cria um prejuízo ao recorrido no valor correspondente ao do seu crédito, sendo a irregularidade processual em questão a sua principal causa, uma vez que suprimiu ilegalmente a oportunidade de o mesmo onerar previamente o património do recorrente e evitar a sua dissipação ou ocultação.
ii) Execução provisória de decisão recorrida sem prestação de caução
A execução provisória de decisão recorrida sem que o exequente/recorrido tenha previamente prestado caução deixa sem qualquer protecção ao executado/recorrente no caso de vir a ser alterada a decisão recorrida nas instâncias superiores, julgando-se, por exemplo, como não devida, no todo ou em parte, a quantia a que foi condenado na primeira instância.
Se for alterada a decisão recorrida e verificar-se que o exequente/recorrido dissipou o valor executado provisoriamente e que o mesmo não possui bens susceptíveis de garantir a sua reposição, o recorrente/executado incorrerá num prejuízo equivalente a esse valor.
II.3. Responsabilidade civil por violação do regime do recurso da apelação e da caução no processo do trabalho
A responsabilidade civil é uma forma de constituição de obrigações pela qual uma pessoa fica adstrita a uma obrigação de indemnizar outra pessoa[9], pressupondo, para o efeito, a ocorrência do facto voluntário do agente (que consiste na conduta que lhe pode ser imputada por estar sob o controlo da sua vontade)[10], da ilicitude (que consiste na violação ilícita do direito de outrem ou de disposição destinada a proteger os interesses alheios), da culpa (que consiste no juízo de censura ao agente por ter adoptado a conduta que adoptou, quando de acordo com o comando legal estaria obrigado a adoptar conduta diferente)[11], do dano (que consiste na supressão ou diminuição de uma situação favorável, reconhecida ou protegida pelo Direito)[12] e do nexo de causalidade entre o facto voluntário do agente e o dano (que consiste na circunstância de o dano derivar do facto voluntário do agente).
Em relação à responsabilidade civil extracontratual do Estado por danos causados pelos seus funcionários no exercício da actividade de gestão pública, aplica-se, com as necessárias adaptações, o regime previsto nos artigos 499º e seguintes do CC, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2 e 119 da Lei nº 7/2014, de 28 de Fevereiro (LPAC). Trata-se, portanto, de uma responsabilidade objectiva, pelo que ocorre independentemente da culpa do agente, nos termos do 501º e 500º conjugados com os artigos 2 e 119 da LPAC.
Os magistrados judiciais são funcionários do Estado e a administração da justiça por eles realizada é uma actividade de gestão pública [artigos 3 e 147 do Estatuto dos Magistrados Judiciais, aprovado pela Lei nº 7/2009, de 11 de Março; artigo 156º do Código do Processo Civil; artigo 1º/3, alínea a), do CPT; artigo 44/1 da Lei nº 10/2018; artigos 3 e 4 do Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado, aprovado pela Lei nº 10/2017, de 1 de Agosto].
Portanto, a parte que incorrer em danos em consequência de qualquer das irregularidades processuais, nos termos referidos no ponto II.2 acima, pode instaurar uma acção de efectivação de responsabilidade civil extracontratual contra o Estado por actos de gestão pública, sustentando-se no preenchimento dos respectivos pressupostos[13], designadamente:
i) O facto voluntário, atendendo que tanto a atribuição do efeito suspensivo ao recurso de apelação sem a prestação de caução pelo recorrente como a execução provisória da decisão recorrida sem a prestação de caução pelo recorrido estão sob o controlo do magistrado judicial que “as praticou”.
ii) A ilicitude, atendendo que a prática do facto voluntário referido na alínea i) viola a lei (processual), mais concretamente os artigos 69 e 70 da CRM, o artigo 79º/1 do CPT, os artigos 36/3, 37 e 44 da Lei nº 10/2018, com as alterações introduzidas pela Lei nº 4/2021.
iii) O dano, atendendo que: por um lado, com a atribuição do efeito suspensivo ao recurso sem a prestação de caução pelo recorrente, o recorrido fica impedido de executar provisoriamente a decisão recorrida para garantir a satisfação do seu crédito no caso de a decisão vir a ser confirmada pelas instâncias superiores, o que propicia que, na pendência do recurso, o recorrente dissipe ou oculte o seu património, fazendo-o incorrer num prejuízo correspondente ao seu crédito; por outro lado, com a execução provisória da decisão recorrida, sem a prestação de caução pelo recorrido, o recorrente fica sem a garantia de reaver o seu valor no caso de a decisão vir a ser alterada pelos tribunais superiores, o que se traduz num prejuízo no caso de o recorrido dissipar o valor e não ter bens correspondentes ao mesmo para a sua reposição.
iv) O nexo de causalidade, atendendo que os prejuízos referidos na alínea iii) derivam do facto voluntário referido na alínea i).
Contudo, o Estado tem o direito de regresso contra o magistrado judicial que tiver praticado os actos causadores de danos, nos termos do artigo 500º/3 do CC conjugado com os artigos 2 e 119 da LPAC.
Conclusão
O Direito do Processo do Trabalho conheceu várias vicissitudes desde o seu surgimento em Moçambique, tendo o regime do recurso de apelação e da caução se metamorfoseado em função das mesmas (vicissitudes).
Não obstante o facto de o Direito do Processo do Trabalho ter surgido para adjectivação do Direito do Trabalho, face à ineficácia do Direito Civil para resolver alguns problemas laborais em concreto e para compensar genericamente a situação de debilidade económica e jurídica do trabalhador subordinado, a sua evolução culminou com o estabelecimento de um equilíbrio processual das partes, atendendo às garantias que lhes são conferidas pela Constituição de recorrer aos tribunais e de impugnar os actos que lesem os seus interesses legalmente protegidos.
No âmbito desse equilíbrio, o legislador estabeleceu o efeito meramente devolutivo como regra no recurso de apelação, podendo, por um lado, o recorrente apenas obter o efeito suspensivo através da prestação de uma caução idónea (no caso de decisão que obriga a uma prestação patrimonial) e, por outro lado, o recorrido/exequente executar provisoriamente a decisão recorrida, desde que, também, preste uma caução idónea (no caso de decisão que obriga a uma prestação patrimonial).
Portanto, tanto numa como noutra situação, o legislador quis estabelecer condições para que qualquer das partes onerasse previamente a contraparte para garantir que, caso a decisão viesse a ser alterada futuramente pelas instâncias superiores, pudessem satisfazer o seu crédito.
Mais concretamente, o legislador pretendeu estabelecer condições para que: a parte contra a qual foi proferida a decisão (que obriga a uma prestação patrimonial) possa recorrer da mesma e obter o efeito suspensivo, mediante a prestação de uma caução idónea, ficando, portanto, onerada nesse sentido, o que garante a satisfação do crédito do recorrido no caso de a decisão ser confirmada pelas instâncias superiores e a devolução do valor caucionado no caso de a decisão ser alterada pelas mesmas (instâncias superiores); a parte a favor da qual foi proferida a decisão possa executar provisoriamente a decisão recorrida, no caso de o recorrente não prestar caução (idónea), desde que a mesma (parte recorrida) a preste, ficando, também, onerada nesse sentido, o que garante a devolução do valor executado provisoriamente no caso de a decisão ser alterada pelas instâncias superiores ou a devolução da caução prestada para a execução provisória no caso de a decisão ser confirmada.
Por conseguinte, a atribuição do efeito suspensivo ao recurso de apelação em questão sem que o recorrente preste caução idónea ou a execução provisória de uma decisão recorrida sem que o recorrido/exequente também preste caução idónea viola a lei processual e, no caso de essa situação causar danos a qualquer das partes, pode a parte prejudicada instaurar uma acção de efectivação de responsabilidade civil extracontratual contra o Estado por actos de gestão pública. Por sua vez, o Estado pode exercer o direito de regresso contra o magistrado judicial que praticou o acto, na sequência do qual emergiram danos na esfera jurídica da referida parte.
A responsabilização do Estado em questão é uma situação que pode ser evitada com o cumprimento do formalismo processual pelos magistrados judiciais, sendo, por isso, indispensável que a sua actuação seja condicente com mesmo (formalismo) para a garantia de uma maior harmonia na administração da justiça.
[1] CARDOSO, Álvaro Lopes apud QUINTAS, Paula, QUINTAS, Helder, Manual de Direito do Trabalho e de Processo de Trabalho, 7ª ed., Almedina, 2018, p. 245.
[2] Idem, ibidem.
[3] FERREIRA, Fernando Amâncio, Manual dos Recursos em Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2008, p. 70.
[4] PRATA, Ana, Dicionário Jurídico, Vol. I, 5ª ed., Almedina, 2008, p. 246.
[5] Indígenas eram definidos como sendo os indivíduos de raça negra ou dela descendentes que, pela sua ilustração e costumes, se não distingam do comum daquela raça – artigo 2º do Decreto nº 16473, de 6 de Fevereiro de 1929.
[6] Não indígenas eram definidos como sendo os indivíduos de qualquer raça que não estejam nas mesmas condições que os indígenas – artigo 2º do Decreto nº 16473, de 6 de Fevereiro de 1929.
[7] Este artigo estabelecia que “as deliberações serão tomadas pela maioria, constarão de acta lavrada na reunião, assinada pelos membros da Comissão, e terão força executória, no caso de não caber recurso ou de não ter sido interposto dentro do prazo legal”.
[8] CUNA, Ribeiro José, Recursos em Processo Civil, Maputo, Escolar Editora, 2023, p. 39.
[9] CORDEIRO, António Menezes apud GUILAZE, Ermenegildo, Análise Económica dos Limites da Responsabilidade Civil, Maputo, Escolar Editora, p. 9.
[10] LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes apud GUILAZE, Ermenegildo, op. cit., p. 11.
[11] Idem, p. 13.
[12] CORDEIRO, António Menezes apud GUILAZE, Ermenegildo, op. cit., p. 15.
[13] É dispensável a verificação da culpa por se tratar de uma responsabilidade objectiva.