Introdução
O Estado garante o acesso dos cidadãos aos tribunais e garante aos arguidos o direito de defesa e o direito à assistência jurídica e patrocínio judiciário (artigo 62 da Constituição da República de Moçambique).
A materialização das garantias em alusão pressupõe a instituição de normas e de princípios instrumentais que regulamentam os trâmites a serem seguidos e/ou a actuação dos intervenientes processuais, entre os quais os magistrados e os advogados ou mandatários judiciais.
As normas e os princípios instrumentais em questão corporizam o Direito Processual, que é um ramo do Direito Público que se subdivide em vários outros ramos, entre os quais, o Direito Processual Civil, o Direito Processual Penal, o Direito Processual do Trabalho e o Direito Processual Administrativo Contencioso.
O Direito Processual prevê o dever de concertação das audiências e diligências processuais, adiante designado apenas por dever de concertação, nos termos do qual os magistrados devem providenciar pela marcação do dia e hora da realização de diligências e audiências mediante prévio acordo com os mandatários judiciais, competindo apenas àqueles (magistrados) designar o dia e hora da realização de diligências e audiências nos casos em que não houver acordo entre estes (os mandatários judiciais) – artigo 156º/A do CPC (Código do Processo Civil) conjugado com os artigos 12 e 358/5 do CPP (Código do Processo Penal), artigo 1º/3 do CPT (Código do Processo do Trabalho), artigo 44 da LTT (Lei nº 4/2021 de 5 de Maio) e artigo 2 da LPAC (Lei nº 7/2014 de 28 de Fevereiro). O dever de concertação está aliado ao princípio da cooperação, que, por sua vez, impõe que os mandatários judiciais actuem de boa-fé e cooperem para a marcação do dia e hora da realização das diligências e audiências [artigo 265º do CPC, conjugado com os artigos 12 e 358/5 do CPP, artigo 1º/3 do CPT, artigo 44 da LTT, artigo 2 da LPAC e artigos 72, 74 e 76, alíneas b) e d), do EOAM (Estatuto da Ordem dos Advogados de Moçambique)].
Ora, a inobservância do dever de concertação é fundamento para o pedido de adiamento das audiências e diligências e, no caso do seu indeferimento, para arguição de irregularidades processuais, o que pode ter efeitos adversos para o bom andamento do processo e, consequentemente, para a boa administração da justiça.
Portanto, mostra-se-nos relevante abordarmos “o dever de concertação das audiências e diligências processuais” para descortinarmos o seu sentido e alcance, e consciencializarmos os intervenientes processuais sobre a necessidade do seu cumprimento para uma boa administração da justiça. Para o efeito, começaremos por abordar (I) o quadro legal de actuação dos magistrados e dos advogados, seguindo-se (II) o dever de concertação das audiências e diligências processuais, (III) as recomendações e a conclusão.
I. Quadro legal de actuação dos magistrados e dos advogados
Os advogados, os magistrados judiciais e os magistrados do Ministério Público são os três pilares da administração da justiça, sendo que, atendendo ao papel preponderante que cada um deles exerce na administração da justiça, o legislador instituiu um quadro legal para a regulação da sua actuação, atendendo às especificidades das suas funções.
No âmbito do quadro legal em questão, não há hierarquia nem subordinação entre advogados, magistrados judiciais e do Ministério Público, devendo todos tratarem-se com consideração e respeito recíprocos (artigo 59/1 do EOAM).
Portanto, atendendo à especial função e competência dos magistrados judiciais e do Ministério Público de dirigir os actos processuais, se lhes é imposto o dever de assegurar aos advogados, quando no exercício da sua profissão, um tratamento compatível com a dignidade da advocacia e condições adequadas para o cabal desempenho do seu mandato [artigo 3 do EMJ (Estatuto dos Magistrados Judiciais), alíneas e) e f) do artigo 4 da LOMP (Lei Orgânica do Ministério Público e Estatuto dos Magistrados do Ministério Público), artigo 59/2 do EOAM].
Por sua vez, os advogados, atendendo à sua função preponderante para a administração da justiça, devem ter um comportamento profissional digno e responsável, cumprindo escrupulosamente os deveres que lhes são impostos por lei, pelos usos, costumes e tradições profissionais (artigos 72 e 74 do EOAM).
Pelo que, na prática de actos processuais e na interação com os magistrados ou mesmo com outros advogados, os advogados têm o dever: de actuar com cortesia (artigo 72 e 74 do EOAM); de não advogar contra a lei ou de não usar de meios ou expedientes ilegais, nem promover diligências reconhecidamente dilatórias, inúteis ou prejudiciais à correcta aplicação da lei ou à descoberta da verdade [artigo 76, alínea b), do EOAM]; de pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento das instituições, entre as quais os tribunais [artigo 76, alínea d), do EOAM].
Ora, o tratamento que é imposto aos magistrados em relação aos advogados e vice-versa deve ser, sempre, orientado pelo quadro legal instituído, o que, necessariamente, implica que, na prática de actos processuais no âmbito do exercício das suas funções, os mesmos devem agir em observância das normas processuais estabelecidas para o efeito [artigos 137º, 138º e 142º CPC conjugados com os artigos 72, 74 e 76, alíneas b) e d), do EOAM].
Aliás, mesmo quando a forma dos actos processuais não esteja expressamente regulada na lei, os mesmos (actos processuais) terão a forma que, nos termos mais simples, melhor se ajuste ao fim que se pretende atingir, o que sempre nos remete à necessidade de actuação com base na lei (artigo 138º do CPC).
Por conseguinte, sem prejuízo de outras normas aplicáveis, é com base no quadro legal em alusão que devem actuar os magistrados e os advogados, não lhes sendo permitidos praticar actos processuais em sua inobservância, sob pena de incorrerem em irregularidades processuais e/ou em violação de deveres profissionais, com todas as consequências negativas daí resultantes para a administração da justiça.
II. O dever de concertação das audiências e diligências processuais
O dever de concertação (das audiências e diligências processuais entre os magistrados e os advogados) está entre as diversas imposições estabelecidas no nosso Direito Processual, nos termos do qual os magistrados devem providenciar pela marcação do dia e hora da realização de diligências e audiências mediante prévio acordo com os mandatários judiciais, encarregando, para o efeito, a secretaria para realizar os contactos necessários, fixando o prazo para o efeito (artigo 156º/A do CPC conjugado com os artigos 12 e 358/5 do CPP, artigo 1º/3 do CPT, artigo 44 da LTT e artigo 2 da LPAC).
Na falta de acordo entre os mandatários judiciais para a fixação do dia e hora da realização de uma audiência ou diligência processual, competirá aos magistrados fazê-lo (artigo 156º/A do CPC conjugado com os artigos 12 e 358/5 do CPP, artigo 1º/3 do CPT, artigo 44 da LTT e artigo 2 da LPAC).
O dever de concertação está aliado ao princípio da cooperação, que, por sua vez, impõe que os mandatários judiciais actuem de boa-fé e cooperem para a marcação do dia e hora da realização das diligências e audiências [artigo 265º do CPC, conjugado com os artigos 12 e 358/5 do CPP, artigo 1º/3 do CPT, artigo 44 da LTT, artigo 2 da LPAC e artigos 72, 74 e 76, alíneas b) e d), do EOAM].
Portanto, o cumprimento do dever de concertação nos termos acima referidos condiciona a regularidade da marcação das diligências e audiências.
Ou seja, a marcação do dia e hora da realização das diligências e audiências só é regular se for feita em cumprimento do dever de concertação.
Com o efeito, nos casos em que forem marcados o dia e hora para a realização de audiência ou diligência em violação do dever concertação e os mesmos conflituarem com a agenda do mandatário judicial, pode este requerer o seu adiamento com este fundamento para um dia e hora em que não se verifique o referido conflito.
No âmbito do princípio de cooperação, para atestar que o adiamento não viola o dever de boa-fé e que não constitui uma manobra para prejudicar o curso normal do processo, o mandatário judicial deverá apresentar prova do conflito de agenda, sendo, para o efeito, atendíveis todos os tipos de provas legalmente admissíveis.
Ora, em face do pedido de adiamento apresentado pelo mandatário judicial, podem se colocar dois cenários em relação ao posicionamento do tribunal, designadamente seu o deferimento ou o seu indeferimento.
Sendo deferido o pedido de adiamento, considerar-se-á sanada a irregularidade e o processo seguirá os seus termos, realizando-se a audiência ou diligência. Este adiamento é isento de custas processuais, na medida em que o conflito de agenda que lhe deu origem deveu-se ao facto de o tribunal não ter cumprido com o dever de concertação, que é um motivo respeitante ao tribunal [artigo 44 do CCJ (Código das Custas Judiciais) – redacção introduzida pelo Decreto nº 14/96 de 21 de Maio]. Pelo que, no caso de arbitramento de custas contra o mandatário judicial pelo adiamento concedido nos termos em alusão, pode ele impugná-las com o fundamento de o mesmo ter ocorrido por motivo respeitante ao tribunal (artigo 44 do CCJ – redacção introduzida pelo Decreto nº 14/96 de 21 de Maio).
Sendo indeferido o pedido de adiamento, estar-se-á em face de uma irregularidade processual, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 201º, 156º/A e 651º, artigos 12 e 358/5 do CPP, artigo 1º/3 do CPT, artigo 44 da LTT e artigo 2 da LPAC. Pelo que, o mandatário judicial pode servir-se das disposições em referência para impugnar a referida irregularidade.
Por conseguinte, em qualquer dos cenários acima colocados, é evidente o efeito negativo resultante da violação do dever de concertação para a celeridade processual, atendendo que, face ao pedido de adiamento, o magistrado deve dedicar o seu já escasso tempo para se pronunciar sobre o mesmo, quando podia usar desse tempo para prática de outros actos processuais necessários para a boa administração da justiça.
Note-se que, no intervalo entre a submissão do pedido de adiamento até ao proferimento do despacho sobre o mesmo (pedido), o processo fica parado, situação que se podia evitar com o cumprimento do dever de concertação.
Ademais, a audiência ou diligência só se vai realizar regularmente se o pedido de adiamento apresentado pelo mandatário judicial for deferido, uma vez que só a partir deste momento é que estarão criadas a condições para o efeito.
Se o pedido for indeferido, pode o mandatário judicial impugnar o respectivo despacho nos termos das já referidas disposições legais, o que, por sua vez, vai paralisar o processo até que se decida sobre a referida impugnação. Em função da decisão que for proferida sobre esta impugnação, podem ocorrer outras démarches processuais que venham embaraçar ainda mais curso normal do processo, o que, de todo, não abona para a administração da justiça.
Nestes termos, da violação do dever de concertação emergem uma serie de situações que, em função da atitude que for adoptada pelos intervenientes processuais, podem desviar o foco do objecto do processo para essas mesmas situações (“passe a repetição”), quando não reflectem qualquer utilidade para o processo (“mas um dispêndio desnecessário de tempo e recursos”) e podiam muito bem serem evitadas.
III. Recomendações
A administração da justiça exige um esforço conjugado dos intervenientes processuais e pressupõe uma actuação condicente, entre outros, com o formalismo processual instituído pelo legislador.
Portanto, recomendamos que os magistrados e os advogados intervenham nos processos em observância dos ditames processuais estabelecidos, em geral, e ao dever de concertação (de audiências e diligências), em particular, devendo:
i) Os magistrados, através da secretaria dos tribunais, contactar sempre aos advogados para a marcação do dia e hora da realização da audiência ou diligência;
ii) Os advogados cooperar com o tribunal para a mesma marcação, agindo sempre de boa-fé e indicando o dia e hora em que tenham disponibilidade para participarem da audiência ou diligência.
Conclusão
A materialização das garantias de acesso dos cidadãos aos tribunais, de defesa, de assistência jurídica e patrocínio judiciário, face às normas processuais instituídas, requer que os actores da administração da justiça, entre os quais os magistrados e os advogados, actuem em sua observância, de modo a promoverem o curso normal do processo.
Portanto, tendo o legislador processual imposto o dever concertação das audiências e diligências, o processo só terá o seu curso normal se o mesmo (dever) for observado pelos magistrados e advogados, por um lado, devendo os magistrados (através da secretaria do tribunal) contactar sempre os advogados para a marcação dos respectivos dia e hora e, por outro lado, devendo os advogados cooperar para essa marcação, sempre no espírito de boa-fé, indicando o dia e hora da sua disponibilidade.
De contrário, o curso do processo será caracterizado por embaraços, entre os quais os adiamentos de audiências e diligências cujas marcações não tenham sido concertadas entre o tribunal e os advogados ou mesmo as impugnações contra os despachos que recaírem sobre os pedidos de adiamento, o que poderá contribuir para a morosidade processual e, consequentemente, para uma má administração da justiça.
Por conseguinte, e atendendo à inexistência de hierarquia entre os magistrados e os advogados, sendo eles profissionais do direito, em geral, e do foro, em particular, é expectável que os mesmos exteriorizem o seu profissionalismo através da prática dos actos processuais que se coadunem com formalismo instituído pelo legislador.
Ou seja, a administração da justiça exige um esforço conjugado dos intervenientes processuais e pressupõe uma actuação condicente, entre outros, com o formalismo processual instituído pelo legislador.
Pelo que, recomendamos que, no exercício da sua função, os magistrados e advogados actuem em cumprimento das normas processuais instituídas pelo legislador, em geral, e em cumprimento do dever concertação em particular, porque só assim é que poderão promover o curso normal dos processos e, consequentemente, a boa administração da justiça.