Introdução
Na construção de obras públicas, as questões da segurança das edificações, qualidade das obras e conformidade das obras para os fins a que se destinam, constituem aspectos que causam muita preocupação à indústria da construção civil, além da opinião pública em geral.
Para assegurar a conformidade e qualidade das obras introduziu-se a necessidade de garantia definitiva das empreitadas, o que corresponde ao período dentro do qual o empreiteiro tem a obrigação de efectuar a manutenção da obra, treinamento da equipa do dono da obra para a boa utilização do empreendimento e correcção de erros ou deficiências que se verifiquem na obra, resultantes da correspondente edificação, má aplicação dos materiais ou erros de construção que sejam da responsabilidade do empreiteiro, incluindo sub-empreiteros sob responsabilidade daquele.
Para o efeito, é também necessário assegurar não só a efectiva execução dos trabalhos de toda a empreitada, mas também a boa execução dos trabalhos, razão pela qual exige-se a outorga de uma garantia bancária, comprovativo da transferência do valor, cheque visado ou seguro-caução que permita que, nos casos da não execução ou má execução dos trabalhos, a mesma (garantia) seja accionada, pagando-se, ao dono da obra, o valor necessário para a realização desses trabalhos ou para a sua boa realização, conforme o caso. É o que resulta do disposto no artigo 235 do Regulamento de Contratação de Empreitadas de Obras Públicas, Fornecimento de Bens e Prestação de Serviços ao Estado, aprovado pelo Decreto n.º 5/2016, de 08 de Março.
A questão que mais se discute tem a ver com a lógica do prazo de garantia que é estabelecido para as obras públicas, considerando que o Estado, nos casos em que é o dono das obras, tratando-se de património público, destina-se a todos os cidadãos e enquanto que tal, o Estado pode ser titular de direitos de consumo face aos fornecedores, neste caso, empreiteiros, havendo necessidade de saber se os prazos de garantia aplicáveis aos direitos do consumidor aplicam-se às empreitadas de obras públicas.
Discussão
Nos termos do artigo 103 do Regulamento de Contratação de Empreitadas de Obras Públicas, Fornecimento de Bens e Prestação de Serviços ao Estado, a Garantia Definitiva é prestada após a adjudicação do contrato e antes da assinatura do contrato, para assegurar o adequado, bom e pontual cumprimento das obrigações dele decorrentes. A apresentação da Garantia Definitiva é condição prévia para assinatura do contrato, não podendo o valor da Garantia Definitiva exceder dez por cento (10%) do valor da proposta da contratada.
Ao abrigo do artigo 243 do Regulamento de Contratação de Empreitadas de Obras Públicas, Fornecimento de Bens e Prestação de Serviços ao Estado, salvo indicação no contrato de prazo diferente, nunca inferior a um (1) ano, o prazo de garantia de obra pública é de cinco (5) anos, dependendo da natureza de cada obra. Durante o prazo de garantia, a contratada deve, à sua custa, proceder à manutenção da obra, reparando, os danos que se mostrem resultar de uma execução deficiente dos trabalhos. Os trabalhos de manutenção a executar durante o prazo de garantia devem ser definidos no contrato, devendo as reparações em causa serem efectuadas logo que as deficiências sejam detectadas.
Por sua vez, ao abrigo do disposto nos números 1 e 3 do artigo 6 da Lei de Defesa do Consumidor, Lei n.º 22/2009, de 28 de Setembro, os bens e serviços destinados ao consumo devem ser aptos a satisfazer os fins a que se destinam e produzir os efeitos que se lhes atribuem segundo as normas legalmente estabelecidas ou, na falta delas, de modo adequado às legítimas expectativas do consumidor. Para o caso específico dos imóveis, a Lei estabelece que o consumidor tem direito a uma garantia mínima de cinco anos.
A primeira questão que se coloca neste caso é se o Estado pode ou não ser considerado um consumidor, enquanto receptor de serviços prestados pelos empreiteiros de construção civil.
A Lei de Defesa do Consumidor, assim como o respectivo Regulamento, aprovado pelo Decreto n.º 27/2016, de 18 de Julho, foram desenhados na perspectiva de estabelecer responsabilidades de todas as pessoas singulares e colectivas públicas e privadas, que têm como actividade a produção, o fabrico, a importação, a construção, a distribuição ou a comercialização de bens ou prestação de serviços aos consumidores mediante cobrança de um preço, como ainda aos organismos, fornecedores, prestadores e transmissores de bens, serviços e direitos, incluindo a Administração Pública, autarquias locais, empresas de capitais públicos ou detidos maioritariamente pelo Estado e empresas concessionárias de serviços públicos.
Ora, justamente por isso, nos casos em que alguma pessoa singular ou colectiva pública ou privada, que tenha como actividade, a produção, o fabrico, a importação, a construção, a distribuição ou a comercialização de bens ou prestação de serviços aos consumidores mediante cobrança de um preço, quer dizer que tal entidade fica automaticamente obrigada a observar os termos das normas de defesa dos direitos do consumidor, independentemente de o destinatário dos serviços ser ou não o Estado. Do mesmo modo, que uma empresa ou sociedade comercial quando seja receptora de bens ou serviços por parte de terceiros, assume a posição de consumidor, podendo exigir o cumprimento das normas de direito do consumo aos demais.
Ademais, conforme já referido, porque os bens ou a prestação de serviços é feita ao Estado que, no fim ao cabo, é de toda a colectividade, implicando, no caso de infra-estruturas públicas, o nível de interesse muito superior ao de uma infra-estrutura privada, razão pela qual não só se aplicam as normas da defesa do consumidor (ao Estado, enquanto colectividade) como também, o nível de segurança e especificações de segurança deve ser ainda mais elevado. Pelo que, não há qualquer dúvida que as normas de defesa dos direitos do consumidor são aplicáveis ao Estado nos casos em que seja receptor de bens ou serviços contratados, nos termos do Regulamento de Contratação de Empreitadas de Obras Públicas, Fornecimento de Bens e Prestação de Serviços.
No nosso olhar, existe um entendimento generalizado, até por parte de entes públicos com poderes jurisdicionais em matéria de contratação pública, de que o prazo mínimo de garantia das empreitadas de obras públicas é de cinco anos.
Nessa sequência, a questão que segue é a de saber se, uma vez que a Lei de Defesa do Consumidor e o respectivo Regulamento são aplicáveis aos serviços prestados ou bens fornecidos a favor do Estado, as obras ou infra-estruturas edificadas a favor do Estado devem ou não possuir um mínimo de garantia de cinco anos, conforme disposto no n.º 3 do artigo 6 da Lei de Defesa do Consumidor?
Para a resposta a essa questão, deve analisar-se o regime da Lei de Defesa do Consumidor em relação ao regime do Regulamento de Contratação de Empreitada de Obras Públicas, Fornecimento de Bens e Prestação de Serviços ao Estado.
Ora, a Lei de Defesa do Consumidor, conforme refere o seu preâmbulo, estabelece o sistema de defesa dos direitos do consumidor, o que implica que estabelece um regime geral de defesa dos direitos do consumidor, enquanto o Regulamento de Contratação de Empreitada de Obras Públicas, Fornecimento de Bens e Prestação de Serviços ao Estado estabelece normas especiais para esse fim.
Consequentemente, é negativa a resposta à questão sobre se, uma vez que a Lei de Defesa do Consumidor e o respectivo Regulamento são aplicáveis aos serviços prestados ou bens fornecidos ao Estado, as obras ou infra-estruturas edificadas a favor do Estado devem ou não possuir um mínimo de garantia de cinco anos, conforme disposto no n.º 3 do artigo 6 da Lei de Defesa do Consumidor, na medida em que:
– Os contratos de empreitada de obras públicas têm a natureza de contratos administrativos e, por isso, estão sujeitos às normas de Direito Administrativo [n.º 1 e alínea a) do n.º 2 do artigo 176 Lei n.º 14/2011 de 10 de Agosto];
– O Regulamento de Contratação de Empreitada de Obras Públicas, Fornecimento de Bens e Prestação de Serviços ao Estado insere normas de Direito Administrativo, que é especial em relação às normas da Lei da Defesa do Consumidor, que têm uma natureza geral, sendo que as normas daquele primeiro prevalecem sobre as normas deste último (v.g. n.º 3 do artigo 7º do Código Civil);
– Através da interpretação histórica se vislumbra que sempre foi esse o pensamento ou a intenção do legislador, atendendo que muito antes da aprovação da Lei da Defesa do Consumidor em questão, o legislador aprovou um regulamento similar através do Decreto n.º 54/2005 de 13 de Dezembro, no qual estabeleceu (no seu artigo 48/1) o prazo mínimo de garantia de um ano – artigo 9º do Código Civil. Ademais, depois da aprovação da Lei da Defesa do Consumidor, o legislador, através do Decreto n.º 15/2010 de 24 de Maio, revogou o regulamento aprovado pelo Decreto n.º 54/2005 de 13 de Dezembro e (no seu artigo 50/1) manteve o prazo mínimo de garantia de um ano – artigo 9º do Código Civil. O Decreto n.º 15/2010 de 24 de Maio veio a ser revogado pelo Decreto n.º 5/2016 de 8 de Março, que aprovou o Regulamento actualmente em vigor, objecto da presente discussão, mantendo o prazo mínimo de garantia de um ano no seu artigo 243/1, o que inequivocamente ilustra que esse sempre foi o pensamento ou a intenção do legislador – artigo 9º do Código Civil.
Por isso, o Estado tem a liberdade de convencionar com os fornecedores ou prestadores de serviços de construção de obras públicas um prazo mínimo de um ano para a garantia de obras públicas, conforme as especificações da obra, bem como o orçamento disponível para a correspondente obra. Isto é, o prazo da obra influi directamente no preço por causa de vários factores, com especial enfoque para os já referidos, como é a necessidade de manutenção da obra durante a garantia e a necessidade de correcção das irregularidades ou deficiências que a obra possa verificar durante o período da garantia, o que obriga que os empreiteiros tenham equipas técnicas no local da obra, acarretando custos proporcionais ao prazo da garantia.
Conclusão
Não obstante a Lei de Defesa do Consumidor ser aplicável ao Estado e estabelecer um prazo mínimo de garantia de cinco anos para os imóveis, no geral, aplica-se o prazo mínimo de um ano aos imóveis públicos contruídos ao abrigo de contratos de empreitada de obras públicas, na medida em que:
– Os contratos de empreitada de obras públicas têm a natureza de contratos administrativos e, por isso, estão sujeitos às normas de Direito Administrativo [n.º 1 e alínea a) do n.º 2 do artigo 176 Lei n.º 14/2011 de 10 de Agosto];
– O Regulamento de Contratação de Empreitada de Obras Públicas insere normas de Direito Administrativo, que é especial em relação às normas da Lei da Defesa do Consumidor, que têm uma natureza geral, sendo que as normas daquele primeiro prevalecem sobre as normas deste último (v.g. n.º 3 do artigo 7º do Código Civil);
– Através da interpretação histórica se vislumbra que sempre foi esse o pensamento ou a intenção do legislador, atendendo que muito antes da aprovação da Lei da Defesa do Consumidor em questão, o legislador aprovou um regulamento similar através do Decreto n.º 54/2005 de 13 de Dezembro, no qual estabeleceu (no seu artigo 48/1) o prazo mínimo de garantia de um ano – artigo 9º do Código Civil. Ademais, depois da aprovação da Lei da Defesa do Consumidor, o legislador, através do Decreto n.º 15/2010 de 24 de Maio, revogou o regulamento aprovado pelo Decreto n.º 54/2005 de 13 de Dezembro e (no seu artigo 50/1) manteve o prazo mínimo de garantia de um ano – artigo 9º do Código Civil. O Decreto n.º 15/2010 de 24 de Maio veio a ser revogado pelo Decreto n.º 5/2016 de 8 de Março, que aprovou o Regulamento actualmente em vigor, objecto da presente discussão, mantendo o prazo mínimo de garantia de um ano no seu artigo 243/1, o que inequivocamente ilustra que esse sempre foi o pensamento ou a intenção do legislador – artigo 9º do Código Civil.
Em todo o caso, facto essencial é que tanto as obras privadas quanto as públicas deveriam exigir altos níveis de segurança, uma vez que, para além da duração da obra, releva que a mesma não constitua um perigo para a integridade física dos cidadãos, por isso a ratio legis da indicação do prazo de garantia devia ser a mesma para obras públicas ou privadas. Sendo a lei criada pelo Estado, através dos seus competentes organismos, é expectável que o mesmo faça investimentos duradouros no sector das obras públicas, o que se consubstanciaria no uso adequado dos fundos públicos, por isso, o alargamento do prazo para cinco anos, como o mínimo, igual ao estabelecido para as obras privadas, pode ajudar no desenvolvimento das infra-estruturas no país, considerando os materiais que obrigatoriamente seriam utilizados para conseguir o cumprimento desse prazo. Igualmente, o alargamento do prazo mínimo de garantia das obras públicas, criaria um ambiente bem diferente para o sector da construção civil, pois a viabilidade do serviço prestado pelo empreiteiro privado (ao Estado), sendo também relevante para o Estado, na medida em que pode garantir a produção de receitas que possam gerar lucros, que é a base de tributação do IRPC, então com o alargamento dos prazos e havendo maior viabilidade, implica que o Estado poderá ter maior encaixe fiscal a nível da tributação não só em sede do IRPC, mas também a nível do IVA.