Introdução
A tramitação eficiente dos processos judiciais pelos tribunais requer que as condutas dos intervenientes processuais sejam baseadas na boa-fé processual.
Com o efeito, o legislador instituiu a litigância de má-fé como um mecanismo do policiamento do processo, incorrendo na mesma todos os intervenientes processuais que, de forma dolosa, deduzirem pretensão ou oposição infundadas, alterarem a verdade dos factos ou omitirem factos essenciais e os que fizerem um uso reprovável do processo ou dos meios processuais, com fim de atentar contra o bem jurídico justiça.
Ora, sendo as partes de um processo assistidas por advogados, sendo os actos processuais praticados por estes e tendo a Ordem dos Advogados de Moçambique (OAM) uma jurisdição disciplinar exclusiva sobre os mesmos, mostra-se-nos relevante discutir o tratamento a que estão sujeitos por lei quando se reconheça que tenham tido uma contribuição directa e pessoal nos actos pelos quais se revelou a má-fé.
Pelo que, nos ocuparemos da discussão em referência nos ponto I e II abaixo. No ponto I, faremos uma abordagem do conceito, pressupostos e natureza da litigância de má-fé, de modo a nos munirmos de bases para a abordagem, no ponto II, da responsabilidade disciplinar do advogado por litigância de má-fé.
Posto isto, passaremos à nossa discussão, nos termos seguintes:
I. Conceito, pressupostos e natureza da litigância de má-fé
I.1. Conceito de litigância de má-fé
O legislador define o ligante de má-fé, no artigo 456º/2 do CPC, como sendo aquele que tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não ignorava, como também o que tiver conscientemente alterado a verdade dos factos ou omitido os factos essenciais e o que tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal ou de entorpecer a acção da justiça ou de impedir a descoberta da verdade.
I.2. Pressupostos da litigância de má-fé
Do conceito de litigante de má-fé definido acima, extrai-se que a litigância de má-fé pressupõe que o litigante pratique um facto ilícito típico, que o mesmo actue com dolo e que tenha o fim de atentar contra o bem jurídico justiça.
I.2.1. Prática de factos ilícitos típicos
A litigância de má-fé pressupõe a prática de factos ilícitos típicos, na medida em que só relevam para a mesma as condutas tipificadas no artigo 456º/2 do Código do Processo Civil (CPC), designadamente a dedução de pretensão ou oposição infundadas, a alteração da verdade dos factos, a omissão dos factos essenciais e o uso reprovável do processo e dos meios processuais.
I.2.2. Actuação com dolo
A litigância de má-fé pressupõe que o litigante actue com dolo na prática dos factos ilícitos típicos, na medida em que, em todos eles (nos factos ilícitos típicos), se exige que o mesmo (litigante) esteja ciente da desconformidade da sua actuação. O dolo pode ser substancial ou instrumental.
O dolo substancial diz respeito ao fundo da causa, ou seja, à relação jurídica material ou de direito substantivo[1]. Portanto, o litigante usa de dolo ou má-fé para obter decisão de mérito que não corresponde à verdade e à justiça[2]. Na disposição do artigo 456º/2 do CPC, o dolo substancial consiste no conhecimento da falta de fundamento, na alteração consciente da verdade dos factos ou na omissão consciente dos factos essenciais[3].
O dolo instrumental diz respeito à relação jurídica processual. O litigante procura sobretudo cansar e o moer o seu adversário, ou somente pelo espírito de fazer mal, ou na expectativa condenável de o desmoralizar, de o enfraquecer ou de o levar a uma transação injusta[4]. Na disposição do artigo 456º/2 do CPC, o dolo instrumental consiste no uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais.
Por conseguinte, não são passíveis de consubstanciar litigância de má-fé as condutas negligentes.
I.2.3. O fim de atentar contra o bem jurídico justiça
O fim de atentar contra o bem jurídico justiça, como pressuposto da litigância de má-fé, reflecte-se no facto de o litigante direccionar a sua conduta para alcançar um objectivo ilegal ou para entorpecer a acção da justiça ou para impedir a descoberta da verdade.
I.3. Natureza da litigância de má-fé
A litigância de má-fé é um instituto processual de tipo público e que visa o imediato policiamento do processo: corresponde a um subsistema sancionatório próprio, de âmbito limitado e com objectivos muito práticos e restritos[5]. Não é uma manifestação de responsabilidade civil, que pretenda suprimir danos, ilícita e culposamente causados a outrem, através de actuações processuais, até mesmo por que a litigância de má-fé pode funcionar oficiosamente [6].
A litigância de má-fé difere da responsabilidade civil por factos ilícitos, na medida em que: a) quanto ao facto ilícito, não relevam todas e quaisquer violações, mas, apenas, as actuações tipificadas no artigo 456º/2 do CPC; b) quanto ao dano, não é requerido – a conduta é punida em si, independentemente do resultado; c) quanto à culpa, exige-se dolo, sendo irrelevante a negligência.
II. Responsabilidade disciplinar do advogado por litigância de má-fé
O advogado é um pilar indispensável da administração da justiça, sendo que ao mesmo se lhe é imposto o dever de adoptar um comportamento público e profissional que não conflitua com os deveres consignados na lei, nos usos, nos costumes e nas tradições profissionais [artigo 72, Estatuto da Ordem dos Advogados de Moçambique (EOAM)].
Os deveres do advogado estão, essencialmente, previstos no EOAM, entre os quais encontramos os deveres de:
i) não advogar contra a lei ou não usar meios ou expedientes ilegais, nem promover diligências reconhecidamente dilatórias, inúteis ou prejudiciais à correcta aplicação da lei ou à descoberta da verdade [artigo 76, alínea c), do EOAM];
ii) pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento das instituições jurídicas [artigo 76, alínea d), do EOAM];
iii) dar ao constituinte a sua opinião conscienciosa sobre o merecimento do direito ou pretensão que este invoque [artigo 81, alínea c), do EOAM];
iv) actuar com maior lealdade, não procurando obter vantagens ilegítimas ou indevidas para os seus constituintes [artigo 85, alínea c), do EOAM].
Os deveres em questão inserem características das condutas sancionadas no âmbito da litigância de má-fé, conforme a abordagem feita no ponto II acima, na medida em que:
- Os deveres referidos nas alíneas i), ii) e iii) inserem as características dos deveres de não deduzir pretensão ou oposição infundada, de não alterar a verdade dos factos ou omitir os factos essenciais e de não fazer do processo e dos meios processuais um uso manifestamente reprovável.
- O dever referido na alínea iv) insere características do dever de não litigar com o fim de conseguir um objectivo ilegal ou de entorpecer a acção da justiça ou de impedir a descoberta da verdade.
A violação dos deveres em questão consubstancia-se no cometimento de infracções disciplinares, passíveis de instauração de processo disciplinar pela OAM que pode culminar com aplicação das sanções disciplinares a serem graduadas em função dos antecedentes profissionais e disciplinares do advogado, do seu grau de culpabilidade, das consequências da infracção e das demais circunstâncias agravantes ou atenuantes verificadas (artigos 92, 99 e 100 do EOAM).
Ora, conforme estabelece o artigo 459º do CPC, “quando se reconheça que o advogado da parte teve responsabilidade pessoal e directa nos actos pelos quais se revelou a má-fé, dá-se conhecimento do facto à OAM, para que possa aplicar as sanções respectivas e condená-lo na quota parte das custas, multa e indemnização que lhe parecer justa”.
Portanto, do artigo 459º do CPC extraem-se como pressupostos para a responsabilização do advogado por litigância de má-fé:
a) Que o mesmo tenha tido responsabilidade pessoal e directa nos actos de má-fé
A responsabilidade pessoal e directa do advogado nos actos de má-fé pressupõe, por sua vez, que o tribunal tenha concluído, em primeiro plano, que a parte que o mesmo representa tenha litigado de má-fé. Só depois disso é que se pode aferir se o advogado teve alguma responsabilidade na prática desses actos.
São casos de responsabilidade pessoal e directa do advogado nos actos de má-fé, as situações em que:
a.1) instaurar uma acção a pedir um preço, depois de se declarar que ele já fora recebido; ou requerer um arresto invocando uma dívida que, anteriormente se declarara solvida[7] – nestas situações, o advogado actua com dolo substancial;
a.2.) apresentar alegações de recurso manifestamente infundadas ou usar o recurso com o objectivo manifestamente dilatório (artigo 676º/3, CPC), recorrendo, por exemplo, de uma decisão judicial com violação de caso julgado – nesta situação, o advogado actua com dolo instrumental.
b) Que se dê conhecimento dos actos de má-fé à OAM para a aplicação de sanções e condenação ao advogado na quota parte das custas, multa e indemnização
Este pressuposto está em consonância com o artigo 94/1 do EOAM que estabelece que os tribunais e outras entidades devem dar a conhecer à OAM a prática por advogados de factos susceptíveis de constituírem infracção disciplinar.
O conhecimento que se dá à OAM deve-se ao facto de a mesma ter jurisdição disciplinar exclusiva sobre os advogados, competindo a ela, em face dos factos que lhes são apresentados, concluir pela existência ou não de indícios do cometimento de infracção disciplinar pelo advogado e, consequentemente, pela instauração ou não de processo disciplinar contra o mesmo [artigo 4, alínea i), e artigo 91 do EOAM]. Na estrutura orgânica da OAM, compete ao Conselho Jurisdicional o exercício da acção disciplinar contra o advogado (artigo 36, 39 e 91 do OAM).
Portanto, os tribunais podem dar a conhecer os factos em referência à OAM na convicção de que os mesmos constituem condutas violadoras dos deveres do advogado e que reflectem a sua responsabilidade pessoal e directa na litigância de má-fé, mas a OAM não está vinculada a esses juízos de valor, podendo concluir pela inexistência de violação dos deveres em questão, pela inexistência de indícios do cometimento de infracção disciplinar e pelo consequente arquivamento do processo.
Conclusão
O advogado pode ser responsabilizado disciplinarmente por litigância de má-fé através de um processo disciplinar instaurado nesse sentido, na sequência de participação feita à OAM pelos tribunais, nos termos dos artigos 459º e 94 do CPC e do EOAM, respectivamente.
No caso de conclusão da existência de indícios do cometimento de infracção disciplinar pelo advogado e a consequente instauração do processo disciplinar, a OAM pode aplicar as sanções previstas no EOAM e condenar o advogado na quota-parte das custas, multa e indemnização que lhe parecer justa, na sequência da prova produzida.
A OAM aprecia de forma livre e independente a participação feita pelos tribunais imputando o advogado de praticar actos de má-fé, o que significa que a OAM pode iniciar uma acção disciplinar contra o advogado e concluir pela inexistência de indícios de violação dos deveres de advogado e do cometimento de infracção disciplinar pelo mesmo, arquivando-a, nessa base.
[1] DOS REIS, Alberto, Código do Processo Civil Anotado, Volume (Vol.) II, 3ª Ed., Coimbra Editora, página (p.) 263.
[2] DOS REIS, Alberto, opus (op.) citatum (cit.), p. 263.
[3] CORDEIRO, António Menezes, Litigância de Má-Fé, Abuso do Direito de Acção e Culpa in Agendo, 3ª edição (ed.), Almedina, 2014, p. 58.
[4] DOS REIS, Alberto, op. cit., p. 264.
[5] CORDEIRO, António Menezes, op. cit., p. 70.
[6] CORDEIRO, António Menezes, op. cit., páginas (pp.) 70 e 71.
[7] CORDEIRO, António Menezes, op. cit., pp. 63 e 64.