Introdução
“Os mandatários judiciais só podem confessar a acção, transigir sobre o seu objecto e desistir do pedido ou da instância, quando estejam munidos de procuração que, individualizando a causa, os autorize expressamente a praticar qualquer desses actos.” – artigo 37º/2 do Código do Processo Civil (CPC).
A complexidade e necessidade multi-dinâmica de gerir interesses por vezes impossíveis de serem exercidos por uma só pessoa constitui uma das causas da existência do mandato que é um contrato de grande importância social cujo conceito encontra-se previsto no artigo 1157º do Código Civil (CC), que dispõe “ Mandato é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra”.
Uma das modalidades especiais do mandato, previstas no nosso ordenamento jurídico, é o mandato judicial cujo regime encontra-se estabelecido nos artigos 32º e seguintes do CPC e constitui um dos pressupostos para a prática de actos jurídicos forenses pelos advogados, os quais, em representação dos seus constituintes, podem, nos processos de parte, praticar os actos processuais especiais de parte, como a confissão, a desistência e a transacção, desde que estes poderes lhes tenham sido expressamente conferidos, sem a necessidade da presença do mandante.
Sucede que por imposição do artigo 37/2, do CPC, se a procuração não individualiza a causa, o mandatário não pode praticar actos processuais de confissão, desistência e transação mesmo quando a procuração que lhe foi outorgada expressamente o autoriza a praticar os actos em referência.
Esta norma, por exigir a individualização da causa, mostra-se problemática, gera controvérsia jurisprudencial a nível do Direito Comparado, colide com os propósitos da representação judiciária e apresenta o inconveniente de sempre que o mandante necessitar de ser assistido pelo seu advogado numa causa, ter de outorgar uma nova procuração para que o mesmo possa confessar, desistir ou transigir.
Neste contexto, em atenção à dinâmica do ordenamento jurídico e os usos da profissão, propomos-mos a analisar o disposto no artigo 37/2 do CPC iniciando a abordagem sobre mandato e procuração.
I. Mandato judicial e procuração forense
- Relação entre mandato judicial e procuração forense.
O mandato judicial é um contrato que envolve necessariamente a representação, e, os poderes de representação são exercidos através da procuração que conforma a obrigação do mandatário em aspectos fundamentais como o dever de agir em nome do mandante e principalmente o dever de não agir para além dos poderes de representação, cuja violação pode gerar responsabilidade civil[1].
- Como se confere o mandato judicial
O mandato judicial é conferido por meio de instrumento público ou documento particular com intervenção notarial, como também por declaração verbal da parte no auto de qualquer diligência que se justifica no processo (conforme disposto no artigo 35º do CPC).
- Conteúdo e extensão do mandato judicial
O mandato Judicial pode ser conferido com poderes gerais ou especiais. No mandato com poderes gerais, o mandante declara na procuração ou verbalmente nos autos que atribui poderes forenses ou para ser representado pelo mandatário em todos os actos e termos do processo principal e respectivos incidentes, mesmo perante os tribunais superiores, sem prejuízo das disposições que exijam a outorga de poderes especiais por parte do mandante. Nos poderes que a lei presume conferidos ao mandatário está incluído o de substabelecer o mandato[2] (artigos 35, 36 e 37/1, todos do CPC). No mandato com poderes especiais, o mandante confere ao mandatário poderes para confessar a acção, transigir sobre o seu objecto e desistir do pedido ou da instância, sendo que para a prática dos actos em referência, é necessário que o mandatário esteja munido de procuração que individualizando a causa expressamente o autorize a pratica-los (Art. 37º/2 do CPC).
II. Análise crítica do artigo 37⁰/2 do CPC
O nº 2 do artigo 37, do CPC, suscita-nos a questão de saber o que quis prevenir o legislador com a imposição da individualização da causa no mandato judicial para que os mandatários possam exercer os poderes de confissão, transação e desistência do pedido ou da instância?
Da análise feita, entendemos que com a imposição da individualização da causa o legislador quis prevenir situações de abuso de representação, ou seja, prevenir que um mandatário judicial a quem tenham sido conferidos poderes para confessar, transigir e desistir numa determinada causa, use dos mesmos poderes para, sem a autorização do mandante, actuar em outras causas em que o mesmo (mandante) seja parte, em prejuízo deste (mandante).
No entanto, a norma em referência (artigo 37º, nº 2, do CPC), não impede que o mandatário abuse do mandato e actue em violação das instruções do mandante em cada uma das causas que o represente.
A este respeito, entendemos que existem disposições legais no nosso ordenamento jurídico que dispõem de melhores mecanismos para acautelar o exercício abusivo do mandato pelo mandatário. Exemplo:
- A alínea a) do artigo 1161 do CC, dispõe que ”O mandatário é obrigado a praticar os actos compreendidos no mandato, segundo as instruções do mandante“ o que significa que mesmo quando mandatário judicial tiver sido conferido poderes para confessar, transigir ou desistir, ele deve agir de acordo com as instruções do mandante e só pode exercê-los se o mandante o tiver instruído nesse sentido.
- As alíneas b), c) e d) do artigo 1161 do CC, dispõem que o mandatário judicial é obrigado a prestar informações sobre a execução do mandato sempre que o mandante lhe peça, a comunicar ao mandante com prontidão a execução do mandato, e a prestar contas findo o mandato ou quando o mandante exigir.
Ou seja, através das disposições supracitadas, o legislador deu autonomia ao mandante para que este possa acompanhar a execução do mandato e conferiu-lhe o direito de solicitar informações de que necessite ao mandatário ao qual o legislador impôs a obrigações de prestar informações sobre a execução do mandato dando a possibilidade ao mandante de se pronunciar sobre a aprovação ou a não aprovação da conduta do mandatário judicial atendendo às instruções dadas para a execução do mandato.
Nestes termos, entendemos que ao invés da individualização da causa, as normas supracitadas e demais disposições não aqui mencionadas previstas no nosso ordenamento jurídico, melhor acautelam situações de abusos de representação.
Outrossim, o mandante tem a liberdade de escolher um mandatário judicial a quem pode conferir poderes especiais[3]. E, quando o mandante outorga procuração forense com a devida observância das formalidades exigidas, a mesma (procuração) goza de fé pública, ao abrigo do art. 35 do CPC e 1/1 do Código Notarial, aprovado pelo Decreto-Lei nº 4/2006, de 23 de Agosto.
No entanto, por causa da exigência da individualização da causa prevista no artigo 37/2 do CPC, mesmo que o mandante deseje, e expressamente autorize o mandatário para que lhe represente em todas e quaisquer acções inclusive as que surgirem após a outorga da procuração (observando-se, obviamente, as instruções do mandante nos termos já referidos), o mandante jamais será representado (nos actos de transigir, desistir, ou confessar) com base naquela mesma procuração (que goza de fé pública) porque será sempre necessário outorgar novas procurações que identifiquem as novas causas que surgirem apôs outorga.
Pelo exposto, entendemos que a exigência da individualização da causa, constitui um entrave desnecessário ao exercício do patrocínio judiciário e apresenta o inconveniente de sempre que o mandante necessitar de ser assistido pelo seu advogado numa causa, ter de outorgar uma procuração para que o mesmo possa confessar, desistir ou transigir.
Este facto demostra os efeitos que podem advir caso o mandatário venha a transigir, confessar ou desistir, munido de procuração que não individualiza a causa e põe em causa o mandato celebrado entre o mandatário e o mandante (em nome de quem a justiça é administrada)[4].
Mais ainda, ao abrigo do artigo 300º/5 do CPC ̎…a nulidade da confissão, desistência, ou transação fica suprida se a sentença for notificada pessoalmente ao mandante e ele não recorrer no prazo legal̎. Ora, considerando que foi em virtude da celebração do mandato e da atribuição de poderes de representação em juízo pelo mandante ao mandatário, através da procuração (que goza de fé pública), que este (mandatário) obrigou-se à prática de actos processuais necessários à defesa dos interesses do mandante (inclusive a confissão, transacção, e desistência da acção)[5], é contraditória a possibilidade de arguição de nulidade para ao fim excepcionalmente a mesma (nulidade) poder ser suprida através da notificação pessoal do mandante, em nome de quem o mandatário praticou os actos em referência.
Pelo que, em atenção ao facto de que o mandatário judicial é um servidor da justiça e do direito[6], e como tal, ė livre de admitir o mandato judicial, a representação e assistência ao mandante em todos os casos perante qualquer jurisdição, autoridade ou entidade pública ou privada com a maior independência e isenção desde que não se sirva do mandato para prosseguir objectivos que não sejam meramente profissionais.
Entendemos que a exigência da individualização da causa em nada se compadece com os usos da profissão tão pouco com a dinâmica do ordenamento jurídico.
III. Soluções propostas
Pelo exposto, propõe-se que seja revisto o nº 2 do artigo 37º do CPC, e retirado do corpo do texto, a expressão “…individualizando a causa…” por se achar desajustada a realidade actual, e porque apenas constitui entrave desnecessário ao exercício do patrocínio jurídico.
A este propósito, com o escopo de normalizar a actividade processual e de dignificar os seus protagonistas, Portugal supriu a obrigatoriedade de individualizar a causa nas procurações onde se conferem poderes especiais.[7] O artigo 45/2 do Código de Processo Civil Português dispõe que “Os mandatários judiciais só podem confessar a acção, transigir sobre o seu objecto e desistir do pedido ou da instância quando estejam munidos de procuração que os autorize expressamente a praticar qualquer desses actos” [8]
Esse facto, demostra a irrelevância da exigência da individualização da causa nas procurações onde se conferem poderes especiais.
Conclusão
A menos que a procuração individualize a causa, o mandatário não pode praticar actos processuais de confissão, desistência e transação mesmo quando esteja munido de uma procuração que expressamente o autorize a praticar os actos em referência nos termos do disposto no artigo 37/2 do CPC.
Da análise feita à esta disposição legal, entendemos que o legislador quis prevenir situações de abuso de representação do mandato pelo mandatário, isto é, prevenir que o mandante actue em outras causas em que o mandatário seja parte, confessando, transigindo ou desistindo, sem autorização e em prejuízo do mandante.
No entanto, não nos parece que o legislador tenha sido feliz, posto que esta imposição não impede que o mandatário judicial abuse dos poderes de representação, ademais, existem disposições legais no nosso ordenamento jurídico que melhor acautelam questões de abuso de representação, tal como o artigo 1161 do CC.
Nestes termos, a figura da individualização da causa, constitui um entrave desnecessário ao exercício do patrocínio judiciário porque apresenta o inconveniente de sempre que o mandante necessitar de ser assistido pelo seu advogado numa causa, ter de outorgar nova procuração para que o mesmo possa confessar, desistir ou transigir.
Outrossim, o mandante tem a liberdade de escolher o mandatário a quem pode conferir poderes especiais. E, a inserção dos poderes especiais na procuração só se justifica quando existe estreita confiança e entendimento mútuo entre o mandante e o mandatario judicial que exerce o mandato mediante instruções do mandante sendo que os actos por si praticados e as razões expostas têm efeito como se proviessem do próprio mandante.
Neste contexto, a figura da individualização da causa em nada se compadece com a dinâmica do ordenamento jurídico, tão pouco com os usos da profissão porquanto mostra-se irrelevante a exigência da individualização da causa.
Face ao exposto, recomenda-se que seja revisto o nº 2 do artigo 37º do CPC, eliminando-se do corpo do texto, a imposição da “…individualizando a causa…” por se achar desajustada a realidade actual, e constituir entrave desnecessário ao exercício do patrocínio jurídico.
[1] Almeida, Carlos Ferreira. Contratos II, conteúdo. Contratos de troca, Edições Almedina, 2007, Pág. 193
[2] Enquanto no mandato judicial, o poder de substabelecer encontra-se incluido nos poderes que a lei presume conferidos ao mandatario judicial, ou seja, compreende-se nos limites dos poderes de representação conferidos pelo mandante ao mandatário judicial, o mesmo não ocorre no mandato geral (previsto no artigo 1157 do CC) aqui a faculdade subtituição do mandatario, so é admissivel se o mandante o pemitir ou se essa faculdade resultar do conteudo da procuracao ou se da relação juridica que a determina (vide artigos 1165 e 264 ambos do CC). Portanto, a faculdade de subtabelecer ocorre de diferentes formas no nosso ordenamento juridico a ter em atençáo.
[3] Ao abrigo do artigo 53/2 do Estatuto da Ordem dos Advogados de Moçambique (Lei nº 28/2009, de 29 de Setembro), “O mandato forense não pode ser objecto, por qaulquer forma de medida ou acordo que impeca ou limite a escolha directa e livre do mandatario pelo mandante”
[4] PESSOA JORGE, MENESES LEITÃO e JANUÁRIO GOMES apud LEITÃO, Luís Manuel Teles de Meneses; op. cit.; Pág. 439.
[5] Ana Prata, Dicionário Jurídico, 4º edição, pp.744
[6] Principio da Deontologia Profissional, consagrada no artigo 74 dos Estatutos da Ordem dos Advogados – Lei 28/2009, de 29 de Setembro.
[7] Vide jurisprudência portuguesa, Decreto-Lei n.º 457/80, de 10 de Outubro; Ac. 2/92 DR 150/92 Iª série A 02-07-1992.
[8] Este Código foi aprovado pelo Decreto-Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, e alterado pelos seguintes diplomas: Lei n.º 114/2017, de 29 de Dezembro; Decreto-Lei n.º 68/2017, de 16 de Junho; Lei n.º 8/2017, de 03 de Março; Lei n.º 40-A/2016, de 22 de Dezembro; Lei n.º 122/2015, de 01 de Setembro; Retificação n.º 36/2013, de 12 de Agosto.