I. Considerações gerais
Na sua concepção orgânica, a Administração Pública constitui um conjunto de entidades jurídicas instituídas com competências e atribuições para “desenvolver a actividade administrativa de interesse colectivo e individual, recebendo da lei a indicação dos seus objectivos e o fundamento dos seus poderes”.[1] Nesse sentido, a Administração Pública deve, através da lei que institui o fundamento dos seus poderes e existência, conseguir corresponder aos seus poderes, alcançar a eficácia e eficiência – o que representa a sua função técnica de cariz político.
Esta premissa importa para a demonstração do facto de que se a lei que institui as competências, atribuições e os fundamentos do poder da Administração Pública para alcançar a sua eficiência e eficácia, não tiver sido o mais ajustadamente colocada à disposição da mesma (Administração Pública), mediante atribuição de mais responsabilidade e rigor, implica que dificilmente essa Administração Pública será eficiente e eficaz. Ou seja, uma das bases para que a Administração Pública seja responsável, eficiente e eficaz é a instituição de um paradigma, especialmente colocado para a garantia desses elementos. O paradigma que deve nortear a Administração Pública (orgânica) é a concretização, nos melhores termos possíveis, da administração pública (material).
A administração pública material é o “conjunto de decisões e operações através dos quais o Estado e outras entidades públicas procuram, dentro das suas orientações gerais traçadas pela Política e directamente ou mediante estímulo, coordenação e orientação das actividades privadas, assegurar a satisfação regular das necessidades colectivas e de bem-estar dos indivíduos”[2] – garantir a eficiência no funcionamento de toda a estrutura/máquina do país – desde os próprios institutos públicos até à organização, funcionamento e regularidade das instituições privadas, empresas, sociedades e associações privadas, através da rápida e adequada resposta às necessidades destas para o seu bom funcionamento.
Portanto, para todos os efeitos, uma melhor Administração Pública é estabelecida conforme são instituídas as normas que irão reger o seu funcionamento. Referimo-nos nesses termos para discutir em torno da figura jurídica do indeferimento tácito em confronto com o dever de a Administração Pública fundamentar as decisões (actos administrativos) que impliquem indeferimento do pedido formulado pelo administrado, tomando ainda em consideração os outros princípios que regem o funcionamento dos órgãos da Administração Pública, mormente o da responsabilidade.
II. Discussão
Em primeiro lugar, é necessário colocar em evidência que à Administração Pública impende o dever de decidir sobre todos os assuntos da sua competência que lhes sejam apresentados pelos administrados, designadamente os que lhes disserem directamente respeito, e ainda os relativos a quaisquer petições, representações, queixas, reclamações ou recursos apresentados em defesa da legalidade e no interesse geral, conforme dispõe o nº 1 do artigo 11 da Lei nº 14/2011, de 10 de Agosto, conjugado com o artigo 10 do Decreto nº 30/2001, de 15 de Outubro. A excepção de a Administração Pública se pronunciar sobre os assuntos submetidos à sua apreciação só existe na situação de há menos de um ano, contado desde a prática do acto até à apresentação do novo pedido, ter praticado um acto administrativo sobre o mesmo pedido formulado pelo administrado e com os mesmos fundamentos, conforme resulta do nº 2 do artigo 11 acima referido.
Consequentemente, salvo o único caso expresso em que a Administração Pública está isenta do dever de se pronunciar sobre os assuntos submetidos para a sua decisão, deve sempre tomar decisões sobre todos os outros assuntos, aceitando ou negando os pedidos formulados pelos administrados (nº 1 do artigo 11 da Lei nº 14/2011, de 10 de Agosto).
Ora, no caso de o pedido formulado pelo administrado ser negado, o acto administrativo que negue esse pedido ou que indefira o requerimento do administrado, a Administração Pública deve no respectivo acto apresentar os necessários fundamentos legais pelos quais o pedido do administrado não pode ser concedido, conforme estabelece o artigo 14 da Lei nº 14/2011, de 10 de Agosto, conjugado com o artigo 12 do Decreto nº 30/2001, de 15 de Outubro.
O dever de decisão possui como corolário, a obrigação de a Administração Pública, também tomar a referida decisão dentro do prazo legal. Os prazos para a prática de actos administrativos ou decisão sobre os pedidos submetidos à apreciação da Administração Pública são definidos em função de cada pedido específico, isto é, deverá verificar-se se em relação a esse pedido concreto foi fixado um prazo específico ou não, conforme resulta da última parte do nº 1 do artigo 76 da Lei nº 14/2011, de 10 de Agosto. Contudo, no caso de ao pedido concreto apresentado pelo administrado não tiver sido fixado um prazo específico, a decisão sobre esse pedido deve ser tomada no prazo de 15 (quinze) dias, contados a partir do dia imediatamente a seguir ao da sua submissão nos termos do artigo 77º da 14/2011, de 10 de Agosto, conjugado com o nº 5 do artigo 58 do Decreto nº 30/2001, de 15 de Outubro.
Porém, conforme se vislumbra, a questão que se coloca é sobre como é que a lei – onde são instituídos os fundamentos do poder da Administração Pública para a sua eficiência, eficácia e responsabilidade – resolvem o problema que pode advir do facto de a mesma (Administração Pública), embora obrigada a se pronunciar sobre todos os assuntos a si acometidos, não se pronunciar sobre certos pedidos submetidos para a sua decisão no prazo legalmente definido. Entendemos que um dos fundamentos para a menor responsabilidade da Administração Pública sobre a falta de decisão dos sobre os assuntos que lhes são submetidos à apreciação resulta da resposta que a própria lei dá à esta questão.
Nos termos do nº 1 do artigo 108 da Lei nº 14/2011, de 10 de Agosto, a falta de decisão no prazo fixado para a sua emissão sobre um pedido dirigido ao órgão administrativo competente, confere ao interessado, salvo disposição legal em contrário, a faculdade de presumir indeferida a pretensão, para poder exercer o respectivo meio de impugnação legal. Designa-se por indeferimento tácito à “presunção legal da negação do pedido dada por meio de omissão de prática de um acto administrativo por um órgão competente”. – Cf. Artigo 1º e anexo da Lei nº 14/2011, de 10 de Agosto, conjugado com a alínea e) do artigo 1º do Decreto nº 30/2001, de 15 de Outubro.
Portanto, na definição do conceito de indeferimento tácito há expressões que, obviamente, saltam à vista, devendo ser sublinhadas, nomeadamente, presunção legal de negação e omissão da prática de um acto administrativo. Fazendo um confronto entre as expressões sublinhadas com os princípios que enformam o âmbito da actuação da Administração Pública, várias questões são colocadas.
Em primeiro lugar, coloca-se a questão sobre qual será a ratio legis que justifica a consagração da presunção legal da negação do pedido formulado pelo administrado através da omissão da prática de um acto administrativo pela Administração Pública, se a mesma (Administração Pública) está obrigada a decidir sobre todos os pedidos que lhe forem submetidos para apreciação? A segunda é relativa ao facto de nos termos da lei ser sempre obrigatória a fundamentação de todas as decisões da Administração Pública que neguem os pedidos formulados pelos administrados. A terceira questão é inerente à problemática de a lei – que institui os objectivos, estabelece os fundamentos do poder e deve garantir a eficiência da Administração Pública – permite que a mesma (Administração Pública) negue pedidos formulados pelos particulares mediante simples inacção. A última questão é relativa aos eventuais efeitos práticos da permissão da negação do pedido pelo mero silêncio e sobre o que mais pesa entre os objectivos que eventualmente justificam a razão da sua consagração e os efeitos práticos dessa consagração.
Pela interpretação lógica das normas que instituem o indeferimento tácito parece que a figura foi consagrada tendo em vista que na situação de a Administração Pública não se pronunciar sobre os pedidos correctamente submetidos à sua apreciação nos prazos estabelecidos por lei, os administrados (particulares) possam exercer o meio legal de impugnação, conforme se retira da última parte do nº 1 do artigo 108 da Lei nº 14/2011, de 10 de Agosto. Portanto, no fim, a ratio legis tinha por finalidade conferir mais garantias aos particulares para poderem agir no caso de a situação se verificar. Contudo, é questionável se esta disposição se conforma ou não com o paradigma que deve nortear a actuação da Administração Pública tomando em consideração o princípio da responsabilidade e se não existiam mais meios ou formas que possam garantir melhor os direitos dos administrados (particulares).
Importa frisar que a mera instituição da possibilidade de a Administração Pública se eximir do dever de decidir sobre um pedido correctamente submetido à sua apreciação sem necessidade de apresentar algum fundamento, por si só reduz a responsabilidade da mesma (Administração Pública). É verdade que não existem leis perfeitas, porém a escolha de um ou outro paradigma deve justificar a orientação num determinado sentido, fazendo com que se opte por uma coisa em detrimento de outra. Numa Administração Pública responsável não deveria ser permitido que pedidos legítimos dos particulares sejam negados por mero silêncio e sem qualquer dever de fundamentação.
Ao se permitir que a Administração Pública negue um pedido por meio de omissão da prática de um acto administrativo, não se dá o devido interesse à obrigação de a mesma (Administração Pública) fundamentar sobre todos os pedidos que neguem os pedidos apresentados pelos administrados. Além do mais, a permissão da negação do pedido com a mera omissão da prática de um acto administrativo coloca em causa a própria responsabilidade da Administração Pública que devia cada vez mais ser sentida e incutida.
Portanto, é impossível que a Administração Pública seja mais responsável se a lei dispõe situações que colocam em causa uma série de princípios que originariam a sua eficácia, eficiência e responsabilidade. Ademais, conforme se tem constatado, a permissão da negação do pedido apresentado pelo administrado (particular) com a mera omissão da prática de um acto administrativo tem concorrido para a inacção da Administração Pública que se abstém de se pronunciar sobre muitos pedidos apresentados, criando enormes prejuízos para os particulares. Isto é, o efeito que se pretendia alcançar com a instituição da figura jurídica do indeferimento tácito tem significado e consequências menores do que o resultado da existência da figura para a Administração Pública, pois neste prisma ela (a figura do indeferimento tácito) promove a inércia, a ineficiência e irresponsabilidade que prejudica imensamente aos administrados (particulares), especialmente às empresas.
III. Conclusão
Conforme se constatou, a figura jurídica do indeferimento tácito foi instituída para garantir o exercício do direito ao recurso do competente meio de impugnação pelos particulares, ou seja, como forma de os particulares procurarem à nível superior, uma solução sobre o mesmo pedido apresentado anteriormente. Contudo, o efeito prático da consagração da figura jurídica, por colocar em cheque uma série de princípios que orientam a Administração Pública, tem-se mostrado contraproducente e extremamente prejudicial para os administrados.
Portanto, constitui uma enorme contradição instituir o dever de decidir sobre todos os pedidos correctamente submetidos à apreciação da Administração Pública e instituir o dever de fundamentação de todas as decisões (actos administrativos) que neguem os pedidos ou indefira os requerimentos apresentados pelos administrados e, meia volta, permitir que a mesma (Administração Pública) sem qualquer fundamento, negue pedidos correctamente submetidos à sua apreciação pela mera omissão da prática de actos administrativos.
IV. Recomendações
Em face desta situação, tomando em consideração o paradigma que deve nortear a Administração Pública – que é o de exercer a actividade material de administração nos mais altos padrões e responsabilidade, garantindo a eficácia e eficiência, respondendo em tempo útil e correcto aos pedidos dos administrados – há necessidade de colocar institutos coerentes com o respectivo paradigma. Nesses termos, há que atribuir-se mais responsabilidade à Administração Pública para a consolidação do paradigma, nomeadamente com a instituição da responsabilidade disciplinar no caso de a mesma (Administração Pública) se eximir do dever de decidir (nº 1 do artigo 11 da Lei nº 14/2011, de 10 de Agosto) ou de se eximir da obrigação de fundamentar todos os actos administrativos que impliquem negação ou indeferimento do requerimento do administrado e completa exclusão da figura do indeferimento tácito.
[1] CAETANO, Marcelo (1973). Manual de Direito Administrativo. Págs. 2, 13 e 14.
[2] CAETANO, Marcelo (1973). Ope. Cit. Pág. 5.