Introdução
No ordenamento jurídico moçambicano, a Constituição da República está no topo da hierarquia das leis, posicionando-se imediatamente a seguir a ela as leis ordinárias (ou seja, as leis em sentido formal, emitidas pela Assembleia da República) e os decretos-leis, o que necessariamente implica que as disposições das duas últimas devem se conformar com o estabelecido naquela primeira.
Dentre as várias matérias reguladas pela Constituição da República, estão as referentes aos órgãos de soberania, entre os quais, e no que interessa à presente discussão, os tribunais.
No seu artigo 229, alínea b), a Constituição da República estabelece que compete ao Tribunal Administrativo julgar os recursos contenciosos interpostos das decisões dos órgãos do Estado, dos respectivos titulares e agentes. À esta disposição se conformam as disposições de várias leis ordinárias, mormente:
- A disposição do artigo 3, alínea a), da Lei no 7/2014 de 28 de Fevereiro, que estabelece que a jurisdição administrativa tem por objecto assegurar a tutela efectiva de direitos e interesses legalmente protegidos das pessoas nas relações sujeitas ao Direito Administrativo que estabeleçam com pessoas colectivas públicas ou sujeitos privados;
- As disposições conjugadas dos artigos 4 e 28, alínea a), da Lei no 7/2015 de 6 de Outubro (altera e republica a Lei no 24/2013 de 1 de Novembro), que estabelecem que compete ao Tribunal Administrativo conhecer os recursos de actos administrativos ou em matéria administrativa praticados pelos membros do Conselho de Ministros.
Contudo, no ordenamento jurídico moçambicano é abundante a jurisprudência do Tribunal Administrativo orientada para o sentido do mesmo ser incompetente para conhecer os recursos contenciosos sobre as decisões do Ministro do Trabalho e Segurança Social, mormente em matéria contravencional, alegadamente porque essa competência é dos tribunais do trabalho por força do disposto no artigo 13, alínea e), da Lei no 4/2021 de 5 de Maio (que altera e republica a Lei no 10/2018 de 30 de Agosto).
Esta situação é bastante problemática, atendendo que a disposição em questão não retira a competência do Tribunal Administrativo para o conhecimento dos recursos contenciosos sobre as decisões do Ministro do Trabalho e Segurança Social, conforme discutiremos a seguir.
I. Do sentido e alcance dos actos administrativos e das relações jurídico-administrativas
Para uma melhor abordagem do tema em questão, mostra-se-nos indispensável clarificarmos o sentido e o alcance dos actos administrativos e das relações jurídico-administrativas.
São actos administrativos as decisões dos órgãos da administração que, nos termos do direito público, visam produzir efeitos numa situação concreta e individual[1]. São exemplos de actos administrativos as decisões do Ministro do Trabalho e Segurança Social em matéria contravencional, nos domínios da sua actuação (ou seja, nos domínios laboral e de segurança social), que visam produzir efeitos jurídicos na esfera jurídica dos administrados (pessoas singulares ou colectivas).
Por sua vez, são relações jurídico-administrativas as que se estabelecem entre instituições ou órgãos da administração pública e os administrados, segundo as regras de Direito Administrativo, nas quais os primeiros (instituições ou órgãos da Administração Pública) figuram munidos de poderes de autoridade pública sobre os segundos (os administrados).
São exemplos de relações jurídico-administrativas, as que se estabelecem entre o Ministro do Trabalho e Segurança Social e os empresários comerciais (administrados)[2], no âmbito dos procedimentos administrativos instituídos por lei para a impugnação de actos praticados por órgãos tutelados pelo mesmo.
Nestes casos, em face da prática de actos ilegais por parte de órgãos da Administração Pública tutelados pelo Ministro do Trabalho e Segurança Social, mormente a Inspecção Geral do Trabalho, os empresários comerciais instauram um recurso tutelar para efeitos da anulação ou declaração de nulidade dos referidos actos, nos termos do artigo 18/1, alínea e), e do artigo 173 da Lei no 14/2011 de 10 de Agosto conjugado com o artigo 3/2, alínea j), do Decreto no 19/2015 de 28 de Agosto e com o artigo 5/2, alínea j), do Regulamento Interno da Inspecção Geral do Trabalho, aprovado pelo Diploma Ministerial no 86/2016 de 7 de Dezembro.
Ora, o recurso tutelar é um procedimento administrativo, na medida em que é uma sucessão ordenada de actos e formalidades com vista a formação e a manifestação da vontade da Administração Pública ou à sua execução[3]. O recurso tutelar é regido por normas do Direito Administrativo, sendo que o Ministério do Trabalho e Segurança Social está munido de um poder de autoridade pública em relação ao administrado que o impulsionou [artigo 18/1, alínea e), artigo 19 e artigo 173, todos da Lei no 14/2011 de 10 de Agosto].
Pelo que:
- Por um lado, a decisão que recair sobre o recurso tutelar é um acto administrativo, atendendo que define uma situação jurídica concreta dos administrados nele interessados;
- Por outro lado, a relação que se estabelece entre o Ministro do Trabalho e Segurança Social e o administrado no recurso tutelar é de natureza jurídico-administrativa, atendendo que é regida por normas de Direito Administrativo e o Ministro do Trabalho e Segurança Social nela figura com poderes de autoridade pública.
Deste modo, estão intrinsecamente relacionados os actos administrativos e as relações jurídico-administrativas, posto que os actos administrativos são praticados pela administração para definir uma situação concreta do administrado no âmbito da relação jurídico administrativa existente entre os mesmos, na qual a administração está investida de poderes de autoridade.
II. Foro para impugnação das decisões do ministro do trabalho e segurança social
O artigo 229, alínea b), da Constituição da República estabelece que compete ao Tribunal Administrativo julgar os recursos contenciosos interpostos das decisões dos órgãos do Estado, dos respectivos titulares e agentes.
Ao artigo 229, alínea b), da Constituição da República, se conformam as disposições de várias leis ordinárias, mormente:
- A disposição do artigo 3, alínea a), da Lei no 7/2014 de 28 de Fevereiro, que estabelece que a jurisdição administrativa tem por objecto assegurar a tutela efectiva de direitos e interesses legalmente protegidos das pessoas nas relações sujeitas ao Direito Administrativo que estabeleçam com pessoas colectivas públicas ou sujeitos privados;
- As disposições conjugadas dos artigos 4 e 28, alínea a), da Lei no 7/2015 de 6 de Outubro (altera e republica a Lei no 24/2013 de 1 de Novembro), que estabelecem que compete ao Tribunal Administrativo conhecer os recursos de actos administrativos ou em matéria administrativa praticados pelos membros do Conselho de Ministros.
Ora, o artigo 13, alínea e), da Lei no 4/2021 de 5 de Maio (que altera e republica a Lei no 10/2018 de 30 de Agosto) estabelece que em matéria contravencional compete aos tribunais de trabalho conhecer e julgar os recursos interpostos sobre decisões de autoridades administrativas nos domínios laborais e da segurança social, salvo os que por força da lei tenham sido atribuídos a outras jurisdições. São autoridades administrativas nos domínios laboral e de segurança social os órgãos da Administração Pública cujos domínios em questão constituem o âmbito da sua actuação, entre os quais o Ministério do Trabalho e Segurança Social, as suas unidades orgânicas, e os órgãos sob a sua tutela [artigos 2, 3, 4 e 6 do Estatuto Orgânico do Ministério do Trabalho e Segurança Social, aprovado pela Resolução no 43/2020 de 9 de Dezembro].
Dentre estes órgãos, os recursos contenciosos dos actos praticados pelo dirigente do Ministério do Trabalho e Segurança Social, ou seja, pelo Ministro do Trabalho e Segurança Social, são conhecidos e julgados pelo Tribunal Administrativo, conforme estabelecem a alínea b) do artigo 229 da Constituição da República, a alínea a) do artigo 3 da Lei no 7/2014 de 28 de Fevereiro, o artigo 4 e a alínea a) do artigo 28 da Lei no 7/2015 de 6 de Outubro (altera e republica a Lei no 24/2013 de 1 de Novembro) conjugados com o artigo 43, ambos da Lei no 7/2012 de 8 de Fevereiro. Note-se que os domínios laboral e da segurança social constituem o âmbito de actuação do Ministério do Trabalho e Segurança Social, estando as suas atribuições e competências estabelecidas nesse sentido, nos termos dos artigos 1, 2 e 3 do seu Estatuto Orgânico, aprovado pela Resolução no 43/2020 de 9 de Dezembro.
Portanto, o legislador apenas atribuiu aos tribunais de trabalho a competência para conhecer e julgar, em matéria contravencional, os recursos interpostos sobre decisões de autoridades administrativas nos domínios laborais e da segurança social nos casos em que essa competência não tenha sido atribuída a outras jurisdições.
Isto implica, necessariamente, que os tribunais de trabalho não têm competência para conhecer e julgar, em matéria contravencional, os recursos sobre decisões de autoridades em questão que tenham sido atribuídas a outras jurisdições.
Pelo que, no que se refere à matéria em questão, os tribunais de trabalho não têm competência para conhecer e julgar, em matéria contravencional, os recursos contenciosos sobre as decisões do Ministro do Trabalho e Segurança Social que tenham sido atribuídas às outras jurisdições.
Por conseguinte, atendendo que a Constituição da República[4], a Lei no 7/2014 de 28 de Fevereiro[5] e a Lei no 7/2015 de 6 de Outubro (altera e republica a Lei no 24/2013 de 1 de Novembro)[6] atribuem ao Tribunal Administrativo a competência para o conhecimento dos recursos contenciosos das decisões ou dos actos administrativos ou em matéria administrativa do Ministro do Trabalho e Segurança Social (nos domínios da sua actuação), os tribunais de trabalho não têm competência para conhecer dos referidos recursos.
Aliás, mesmo se o artigo 13, alínea e), da Lei no 4/2021 de 5 de Maio (que altera e republica a Lei no 10/2018 de 30 de Agosto) não estipulasse a ressalva em referência, o Tribunal Administrativo teria competência para o conhecimento dos recursos em questão, uma vez que:
- A mesma competência é atribuída ao Tribunal Administrativo pela Constituição da República, que é hierarquicamente superior à Lei no 4/2021 de 5 de Maio (que altera e republica a Lei no 10/2018 de 30 de Agosto) e cujas normas prevalecem sobre as normas desta;
- A Lei no 7/2014 de 28 de Fevereiro e a Lei no 7/2015 de 6 de Outubro (que altera e republica a Lei no 24/2013 de Novembro) são leis especiais do Direito Processual Administrativo, na medida em que a primeira regula os procedimentos atinentes ao processo administrativo contencioso e a segunda aprova a Lei Orgânica da Jurisdição Administrativa, sendo que, prevalecem sobre a Lei no 4/2021 de 5 de Maio (que altera e republica a Lei no 10/2018 de 30 de Agosto), nos termos do artigo 7º/3 do Código Civil;
- A competência do Tribunal Administrativo é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria (artigo 6/1 da Lei no 7/2014 de 28 de Fevereiro).
Sendo que, de qualquer forma, o Tribunal Administrativo é competente para o conhecimento dos recursos em questão.
Com o efeito, a jurisprudência do Tribunal Administrativo orientada para o sentido de o mesmo (Tribunal Administrativo) ser incompetente para o conhecimento dos recursos contenciosos sobre as decisões do Ministro do Trabalho e Segurança social colide inequivocamente com a Constituição e com a legislação ordinária vigentes na República de Moçambique, o que se traduz na sua inconstitucionalidade e legalidade.
Portanto, recomendamos que o posicionamento da jurisprudência do Tribunal Administrativo em referência seja revisto de modo que o mesmo se conforme com Constituição e com a lei ordinária, conhecendo e julgando os recursos contenciosos sobre as decisões em questão (ou seja, sobre as decisões dos Ministro do Trabalho e Segurança Social, nos domínios da sua actuação) por configurarem actos administrativos praticados no âmbito das relações jurídico-administrativas entre o Ministro em alusão enquanto órgão da Administração Pública e os administrados.
Conclusão
O artigo 13, alínea e), da Lei no 4/2021 de 5 de Maio (que altera e republica a Lei no 10/2018 de 30 de Agosto) apenas atribuiu aos tribunais de trabalho a competência para conhecer e julgar, em matéria contravencional, os recursos interpostos sobre decisões de autoridades administrativas nos domínios laborais e da segurança social nos casos em que essa competência não tenha sido atribuída a outras jurisdições.
Pelo que, os tribunais de trabalho não têm competência para conhecer e julgar, em matéria contravencional, os recursos contenciosos sobre as decisões do Ministro do Trabalho e Segurança que tenham sido atribuídas às outras jurisdições.
A Constituição da República [artigo 229, alínea b)], a Lei no 7/2014 de 28 de Fevereiro [Artigo 3, alínea a)],
e a Lei no 7/2015 de 6 de Outubro – altera e republica a Lei no 24/2013 de 1 de Novembro [Artigos 4 e 28, alínea a)] atribuem ao Tribunal Administrativo a competência para o conhecimento dos recursos contenciosos das decisões ou dos actos administrativos ou em matéria administrativa do Ministro do Trabalho e da Segurança Social (nos domínios da sua actuação), sendo que os tribunais de trabalho não têm competência para conhecer dos referidos recursos.
Em todo o caso, mesmo se o artigo 13, alínea e), da Lei no 4/2021 de 5 de Maio (que altera e republica a Lei no 10/2018 de 30 de Agosto) não ressalvasse a sua incompetência para julgar e conhecer de recursos que por força da lei tenham sido atribuídos a outras jurisdições, o Tribunal Administrativo teria competência para o seu conhecimento, na medida em que:
- A mesma competência é atribuída ao Tribunal Administrativo pela Constituição da República, que é hierarquicamente superior a Lei no 4/2021 de 5 de Maio (que altera e republica a Lei no 10/2018 de 30 de Agosto) e cujas normas prevalecem sobre as normas desta;
- A Lei no 7/2014 de 28 de Fevereiro e a Lei no 7/2015 de 6 de Outubro (que altera e republica a Lei no 24/2013 de Novembro) são leis especiais do Direito Processual Administrativo, na medida em que a primeira regula os procedimentos atinentes ao processo administrativo contencioso e a segunda aprova a Lei Orgânica da Jurisdição Administrativa, sendo que, prevalecem sobre a Lei no 4/2021 de 5 de Maio (que altera e republica a Lei no 10/2018 de 30 de Agosto), nos termos do artigo 7º/3 do Código Civil;
- A competência do Tribunal Administrativo é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria (artigo 6/1 da Lei no 7/2014 de 28 de Fevereiro).
Com o efeito, a jurisprudência do Tribunal Administrativo orientada no sentido de o mesmo ser incompetente para o conhecimento dos recursos contenciosos sobre as decisões do Ministro do Trabalho e Segurança Social viola a Constituição e a legislação ordinária, sendo que recomendamos que seja revisto esse posicionamento de forma a que o Tribunal Administrativo se conforme com a Constituição e com a lei ordinária, conhecendo e julgando os recursos contenciosos das decisões em questão por configurarem actos administrativos praticados no âmbito das relações jurídico-administrativas.
[1] Vide o Glossário da Lei no 14/2011 de 10 de Agosto.
[2] Nos termos do artigo 2 do Código Comercial, aprovado pelo Decreto-Lei nº 2/2005 de 27 de Dezembro, são empresários comerciais: a) as pessoas singulares e colectivas que, em seu nome, por si ou intermédio de terceiros, exercem uma empresa comercial; as sociedades comerciais.
[3] Vide o Glossário da Lei no 14/2011 de 10 de Agosto.
[4] Vide o Artigo 229, alínea b), da Constituição da República.
[5] Vide o Artigo 3, alínea a), da Lei no 7/2014 de 28 de Fevereiro.
[6] Vide os Artigos 4 e 28, alínea a), da Lei no 7/2015 de 6 de Outubro (altera e republica a Lei no 24/2013 de 1 de Novembro).