A Comissão Interministerial da Reforma da Administração Púbica, abreviadamente designada por CIRAP, aprovou o Estatuto Orgânico do Instituto de Supervisão de Seguros de Moçambique, abreviadamente designado por ISSM[1], através da Resolução no 9/2018, de 22 de Março, revogando o Estatuto Orgânico aprovado pelo Decreto nº 29/2012, de 26 de Julho.
A CIRAP foi criada através do Decreto Presidencial no 2/2016, de 20 de Maio, e é um órgão de coordenação de actividades desenvolvidas no âmbito da Reforma e Desenvolvimento da Administração Pública, subordinado ao Conselho de Ministros.
A CIRAP aprovou o novo estatuto do ISSM através da Resolução do Conselho de Ministros no 30/2016, de 31 de Outubro, no exercício de competência delegada pelo Conselho de Ministros para aprovar Estatutos Orgânicos dos Ministérios, Institutos Públicos e Fundos Públicos ao abrigo do disposto no número 2 do artigo 46 e no 1 do artigo 82, ambos da Lei no 7/2012, de 8 de Fevereiro (Lei de Base da Organização e Funcionamento da Administração Pública).
Ora, a revogação do Decreto nº 29/2012, de 26 de Julho, pela Resolução no 9/2018, de 22 de Março, suscita muitas dúvidas em relação a sua admissibilidade no ordenamento jurídico moçambicano, atendendo aos princípios norteadores do Direito no contexto do Sistema Romano-Germânico.
Pelo que, surge a questão se uma Resolução do Governo pode ou não revogar um Decreto?
Por isso, propomo-nos a analisar e discutir essa revogação nas linhas que abaixo se seguem.
Discussão
A revogação é uma das formas de cessação da vigência das leis que se traduz no afastamento de uma lei por uma outra, de valor hierárquico igual ou superior.[2] As leis são aqui entendidas, no seu sentido lato, ou seja, como sendo normas jurídicas que foram criadas de acordo com um determinado processo, isto é, criadas por decisão e imposição de uma autoridade. A este sentido da noção de lei, contrapõe-se o sentido restrito, segundo o qual as leis consistem no conjunto de diplomas emanados pela Assembleia da República, como órgão legislativo do ordenamento jurídico moçambicano (artigo 168 da Constituição da República de Moçambique – CRM)[3]. Assim, em sentido amplo, o conceito de leis corresponde ao de actos normativos, compreendendo, indubitavelmente, aquelas emanadas da Assembleia da República, os Decretos-Lei, os Decretos Presidenciais e os Decretos do Conselho de Ministros, conforme resulta dos artigos 142, 157, 181 e 209/1 da CRM. Estas normas estabelecem entre si uma relação de prevalência decorrente da hierarquia sob a qual cada uma delas se posiciona em relação à outra.
Se só uma norma igual ou superior pode revogar a outra, tendo atenção ao exposto acima, duas perguntas podem ser levantadas: a primeira é de se saber se as Resoluções do Governo podem ser consideradas actos normativos ou não? A segunda consiste em saber a posição da Resolução do Conselho de Ministros/Governo em relação ao Decreto, ou seja, será que aquela é inferior, igual ou superior a este, para assim se aferir se pode ou não revogá-lo? Pelo que, a seguir passa-se a reflectir sobre cada uma delas.
Serão as Resoluções do Governo Actos Normativos?
Para melhor discussão desta questão, importa, antes, aprofundar e clarificar alguns aspectos em torno das figuras do acto normativo, da Resolução e do Decreto.
São actos normativos todos os actos dos órgãos do Estado com um carácter geral e abstrato.[4] Os mesmos inserem-se no conjunto dos actos jurídico-públicos, os quais traduzem a concretização prática da vontade do Estado. Os actos jurídico-públicos relacionam-se ao princípio da separação de poderes, estando ligados às diversas funções jurídico-públicas desenvolvidas pelo Estado. Assim, estes actos podem ser constitucionais, legislativos, políticos, administrativos e jurisdicionais[5]. Os actos normativos correspondem aos actos legislativos (tomados no sentido lato, correspondendo aos actos legislativos strictu sensu e aos actos regulamentares), e estão consagrados no artigo 142 da CRM, e demais disposições constitucionais já mencionadas. Então onde se enquadram as Resoluções e os Decretos?
Frequentemente recorre-se à Resolução para a materialização de certas deliberações de órgãos colegiais, associadas a actos políticos[6]. Esta (a resolução) pode assumir duas formas dependendo do órgão sobre que emanam, podendo ser resolução da Assembleia da República ou Resolução do Conselho de Ministros[7].
O texto constitucional refere-se às Resoluções mas não fornece, em nenhum lado, elementos sólidos para uma clara qualificação dessa categoria jurídico-constitucional. A Constituição se limita a considerar as Resoluções como uma forma da Assembleia da República e do Governo manifestarem as suas intenções e tomarem decisões, sem que seja necessário adoptar um acto normativo (Lei, Decreto-lei, Decreto Regulamentar e ainda os Avisos do Banco de Moçambique).
O Decreto, por sua vez, é um acto solene e definitivo do poder executivo. Conforme resulta do número 3 do artigo 142 da CRM, os Regulamentos[8] do Governo, revestem a forma de Decreto. Os Decretos, ao lado dos Decretos-Lei (actos que emanam do Governo, no uso da Lei de Autorização Legislativa, materializando a função legislativa governamental, nos termos dos artigos 179 e 180 da CRM) representam os actos normativos do Conselho de Ministros (artigo 209/1), sendo que quaisquer outros actos (que não sejam normativos) revestem a forma de resolução (artigo 209/4).
No entanto, o que se percebe na prática é que o Governo, através de suas resoluções, produz actos normativos, o que não nos parece estranho, e não muito pertinente aprofundar na presente opinião, até porque alguma doutrina, baseando-se em outros ordenamentos jurídicos, como o Português, demonstra que as resoluções podem possuir um conteúdo normativo assim como não[9], na medida em que são a actividade política do Governo, expressa em texto, podendo traduzir-se na aprovação de instrumentos políticos ou na constituição de equipas de trabalho, etc., não adquirindo apenas dimensão normativa.
Relação de prevalência entre a Resolução do Governo e o Decreto
No tocante à questão da posição hierárquica ocupada pela Resolução do Conselho de Ministros perante o Decreto, para assim se aferir a relação de prevalência estabelecida entre as duas figuras, é importante salientar que as Resoluções do Conselho de Ministros, normalmente, são dirigidas a temas de interesse transversal a todos os departamentos governamentais, e por isso constituem um compromisso de todo o Governo[10]. Porém, não nos parece correcto equiparar essas Resoluções ao Decreto, ou até posicioná-las acima deste, na medida em que a Constituição não se lhes consagra a qualidade de actos normativos, limitando-se apenas em atribuir-lhes suma natureza residual, para todos aqueles actos através dos quais o Conselho de Ministros pretenda manifestar a sua vontade, sem que para isso precise recorrer à figura dos actos normativos (artigo 209 da CRM).
O estatuto do Decreto enquanto Regulamento (acto regulamentar) do Governo tem fundamento e sede constitucional, pelo que dispõe de prevalência formal sobre os demais actos regulamentares e administrativos desse mesmo Governo, conforme resulta do número 4 do artigo 142 e o número 1 do artigo 209 da CRM. A posição do Decreto Regulamentar no leque dos regulamentos administrativos é dotada de originalidade, dada a sua presença constitucional associada à gravidade procedimental que lhe está inerente[11]. Aliás, neste aspecto reside a principal diferença formal entre o Decreto e a Resolução (e demais actos regulamentares) na medida em que para o caso do Decreto, há obrigatoriedade de verificação da assinatura do Primeiro-Ministro bem como sua ordem para a respectiva publicação, por força do artigo 209/3 da CRM, enquanto para o caso da Resolução, essa obrigatoriedade não é constitucionalmente consagrada.
Assim, não é descartada qualquer discussão que coloque em causa a constitucionalidade da revogação do Decreto no 29/2012, de 26 deJulho, pela Resolução no 9/2018 de 22 de Março, pelo facto de o Decreto ser a forma constitucionalmente definida de que se devem revestir os actos regulamentares do Governo.
Ademais, para a Resolução do Governo, mesmo quando se revista de carácter normativo, não se encontra, em qualquer disposição, nem na Constituição, nem em legislação ordinária, fundamento que alicerce sua qualidade de Regulamento Administrativo, bem como sua posição de norma de valor igual ou superior ao Decreto.
Portanto, porque o Decreto é consagrado como a forma adequada de que se devem revestir os actos regulamentares do Governo, e ainda pressupõe maior solenidade na sua produção enquanto norma jurídica, torna-se evidente a sua superioridade em relação à Resolução (quando contenha actos normativos) e qualquer outra forma de manifestação de Regulamentos Administrativos (como por exemplo o Diploma Ministerial), e por isso mesmo, o facto de deter força suficiente para revogar qualquer um deles, mas nunca o contrário.
É por isso que somos da opinião que a revogação feita pela Resolução no 9/2018, de 22 de Março, ao Estatuto Orgânico do ISSM aprovado pelo Decreto no 29/2012, de 26 deJulho, representa um lapso na observância de princípios e normas jurídicos no processo de produção normativa. Somos também da opinião que esse lapso possa ter sido influenciado pela ausência de uma tipologia formal de regulamentos definida na Constituição, bem como em legislação que regule, de forma detalhada e exaustiva, aspectos relativos ao poder regulamentar do Governo, bem como a relação entre os diversos regulamentos[12].
A este respeito, apreciando o Direito Comparado, importa salientar que, para fazer face aos problemas do género do tema que nos propusemos discutir, o ordenamento jurídico português, procurou através do seu Código do Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 07 de Janeiro, estabelecer a relação entre cada um dos regulamentos aprovados pelo Governo. Assim, o número 3 do seu artigo 138º, recorrendo a relações de prevalência, dispõe que no topo dos regulamentos do Governo se encontra o decreto regulamentar, impondo-se às demais formas de acto regulamentar. De seguida, encontra-se a resolução do Conselho de Ministros, quando tenha natureza normativa, sucedida pela portaria e, por fim, pelo despacho.
O nosso legislador constitucional, por outro lado, pode ter-se escusado de consagrar na Constituição da República a tipologia formal dos regulamentos, por forma a garantir, ao Governo e aos diversos órgãos da Administração Pública, melhor flexibilidade no exercício da função administrativa. Em todo o caso, considerando a configuração legal em vigor em Moçambique, e considerando que o órgão autor da Resolução no 9/2018 de 22 de Março, a CIRAP, detinha de competências para aprovar o novo Estatuto Orgânico do ISSM, mas carecia de poderes para produzir um decreto, o que podia ter sido feito era garantir-se a revogação do Decreto no 29/2012, de 26 deJulho, por outro Decreto do Conselho de Ministros, dispondo algumas ressalvas em forma de normas transitórias, para que só depois a CIRAP aprovasse o novo Estatuto Orgânico.
Recomendação
Face ao exposto, recomendamos que o Governo, oficiosamente, aprecie e rectifique o erro na observância de formalidades da referida revogação, no exercício de sua competência de órgão regulamentador da actividade económica e dos sectores sociais, consagrado na alínea f) do número 1 do artigo 203 da CRM e em respeito ao princípio da legalidade do funcionamento da Administração Pública, consagrado no número 2 do artigo 248 da CRM, e no artigo 19 da Lei nº 7/2012 de 8 de Fevereiro, conjugado com o número 2 do artigo 39 da mesma Lei. Assim, como já foi mencionado, de modo a rectificar o tal erro, recomendamos que o Governo proceda à revogação da Resolução no 9/2018, de 22 de Março, e do Decreto no 29/2012, de 26 deJulho (irregularmente revogado por aquela resolução), por um Decreto do Conselho de Ministros, o qual, querendo, pode aprovar o novo estatuto orgânico do ISSM (no contexto do princípio da desburocratização e simplificação de procedimentos[13]), ou pode dispor de algumas ressalvas em forma de normas transitórias, para que só depois a CIRAP tenha melhores condições para aprovar o novo Estatuto Orgânico do ISSM.
Não obstante, assumindo-se a inconstitucionalidade e ilegalidade da revogação do Decreto no 29/2012, de 26 deJulho, pela Resolução no 9/2018, de 22 de Março, realçamos que um grupo de dois mil cidadãos, o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República, um terço ou mais dos deputados da Assembleia da República, o Primeiro-Ministro e o Provedor de Justiça podem requerer que o Conselho Constitucional aprecie a mesma revogação em vista a declarar a sua inconstitucionalidade (bem como da Resolução revogadora), no contexto do exercício de suas competências consagradas na alínea a) do número 1 do artigo 243 e o número 1 do artigo 244 da CRM.
Conclusão
A Resolução do Governo/Conselho de Ministros é fonte de valor inferior ao Decreto e, por isso, não pode revogar este último.
Por conseguinte, para o nosso caso concreto, a revogação feita pela Resolução no 9/2018, de 22 de Março, ao Estatuto Orgânico do ISSM, aprovado pelo Decreto no 29/2012, de 26 deJulho, é inconstitucional e ilegal na medida que representa um lapso na observância de princípios e normas jurídicas (constitucionais) no processo de produção normativa. E, por ser inconstitucional e ilegal, é passível de assim ser declarada pelo Conselho Constitucional, nos trâmites e termos dos artigos 243 e 244 da CRM. Recomenda-se ainda que, de forma oficiosa, o Governo rectifique o erro de formalidade pela revogação da Resolução no 9/2018, de 22 de Março, e do Decreto no 29/2012, de 26 deJulho, por um Decreto que pode aprovar o novo estatuto orgânico do ISSM ou abrir espaço para que o CIRAP não encontre quaisquer obstáculos formais para exercer suas competências delegadas e aprovar tal estatuto, de forma regular.
[1] O ISSM, o qual foi criado pelo Decreto-Lei n.º 1/2010, de 31 de Dezembro.
[2] DIOGO, Luís da Costa, JANUÁRIO, Rui, Noções e Conceitos Fundamentais de Direito, Quid Juris – Sociedade Editora, Lisboa, p. 156.
[3] DIOGO, Luís da Costa, JANUÁRIO, Rui, Op. Cit., p. 143.
[4] TIMBANE, Tomás e outros, Estudos de Direito Constitucional Moçambicano – Contributos para Reflexão, Maputo 2012, p. 309.
[5][5] GOUVEIA, Jorge Bacelar, Direito Constitucional de Moçambique – Lisboa/Maputo, 2015, p. 386.
[6] Os quais são aqueles praticados pelo Estado em vista a assegurar a prossecução dos interesses essenciais da colectividade através dos órgãos do poder político.
[7][7] CANOTILHO, Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed., Edições Almedina, Coimbra, 2003, pp. 858-859.
[8] Regulamentos são comandos de autoridade emitidos unilateralmente por órgãos do Governo ou da Administração, abstractos e na maioria dos casos, gerais, para a regulação das relações gerais de poder do Estado. Decorrem do poder regulamentar da Administração Pública, que se traduz no poder de estatuir por via geral, concedido a autoridades diferentes da Assembleia da República, quer nacionais, quer locais.
[9] CANOTILHO, Gomes, Op. Cit., p. 855.
[10] DIOGO, Luís da Costa, JANUÁRIO, Rui, Op. Cit., p. 152.
[11] PINHEIRO, Alexandre S., Problemas De Constitucionalidade Das Normas De Prevalência Entre Regulamentos Do Governo No Código Do Procedimento Administrativo De 2015, Coimbra Editora, 2015, p. 148.
[12] É verdade que existem a Lei n.o 14/2011, de 10 de Agosto, que traz algumas disposições relativas ao Regulamento Administrativo, e a Lei n.o 7/2012, de 10 de 8 de Fevereiro, que, entre outros aspectos, regula a Administração do Estado, atribuindo competências regulamentar a diversos órgãos, mas estas leis não tratam do assunto dos regulamentos de forma profunda, ou pelo menos, suficientemente resolutória dos problemas como o reflectido na presente opinião.
[13] Vide o artigo 7 da Lei 7/2012, de 8 de Fevereiro.