Introdução
O Conselho de Ministros aprovou, através do Decreto nº 94/2013, de 31 de Dezembro, o Regulamento de Exercício da Actividade de Empreiteiro e de Consultor de Construção Civil (REAECCC).
O REAECCC estabelece, no seu artigo 2, que podem exercer a actividade de empreiteiro e de consultor de construção civil os empreiteiros ou consultores nacionais (empresas em nome individual pertencentes a cidadãos Moçambicanos ou sociedades comerciais constituídas ao abrigo da lei Moçambicana, com sede em Moçambique, e com mais de 50% do capital social Moçambicano) ou estrangeiros (empresas em nome individual pertencentes a cidadãos estrangeiros ou sociedades comerciais constituídas ao abrigo de lei estrangeira ou abrigo da lei Moçambicana com mais de 50% do capital social estrangeiro) legalmente autorizados.
O REAECCC estabelece ainda, no seu artigo 3, que os empreiteiros ou consultores de construção civil são autorizados a exercer a actividade nas obras públicas (as que são realizadas em bens imóveis, promovidas, total ou parcialmente, por conta do Estado, das autarquias locais, dos institutos públicos, das empresas públicas e das empresas participadas do Estado) ou nas obras particulares (as que são realizadas em bens imóveis, promovidas por entidades particulares).
Contudo, o REAECCC estabelece, no seu artigo 48/2, que “o foro para dirimir qualquer litígio emergente do contrato de empreitada ou de prestação de serviços é nacional cabendo apenas as partes intervenientes a sua indicação de acordo com o estabelecido na lei do Código Civil” (CC). Esta norma é, quanto a nós, problemática na medida em que destoa com o sistema de normas vigentes sobre a determinação do foro para a resolução de litígios.
Pelo que, no presente artigo propomo-nos a discutir em torno da problemática em questão nos pontos seguintes:
I. O sistema normativo referente ao foro de resolução de litígios
No nosso ordenamento jurídico, o sistema normativo referente a determinação do foro competente para a resolução de litígios é, essencialmente, composto por leis processuais e por leis orgânicas dos tribunais. As leis substantivas, como por exemplo o Código Civil (CC)[1], estabelecem o regime jurídico de situações jurídicas diversas, entre os quais, o regime jurídico dos contratos, norteando-se a celebração destes (contratos) através do mesmo (regime).
No caso em concreto, atendendo que os contratos de empreitada e de consultoria de construção civil podem assumir a natureza pública ou a natureza privada, o sistema normativo da determinação do foro competente para a resolução de litígios a eles referentes é composto, essencialmente, pelo Código do Processo Civil (CPC)[2], Lei da Organização Judiciária (LOJ)[3], Lei do Processo Administrativo Contencioso (LPAC)[4], Lei Orgânica da Jurisdição Administrativa (LOJA)[5], Lei da Formação da Vontade Administrativa e Defesa de Interesses dos Particulares (LVAIP)[6], Lei da Arbitragem[7].
Para uma melhor discussão sobre o assunto, abordaremos de forma separada o sistema normativo referente ao foro de resolução de litígios emergentes de contratos de empreitada e de consultoria de construção civil de natureza pública e o sistema normativo referente ao foro de resolução de litígios emergentes dos similares contratos de natureza privada.
a) Sistema normativo referente ao foro de resolução de litígios emergentes de contratos de empreitada e de consultoria de construção civil de natureza pública
Assumem natureza pública, os contratos de empreitada de obras públicas e os contratos de prestação de serviços de imediata utilidade pública, na medida em que constituem contratos administrativos, ou seja, constituem acordos de vontades pelos quais são constituídas, modificadas ou extintas as relações jurídicas administrativas (artigo 176, LVAIP).
Ao abrigo do artigo 4 da LOJA são competentes para dirimir litígios emergentes de contratos administrativos o Tribunal Administrativo, os tribunais administrativos provinciais e o Tribunal Administrativo da Cidade de Maputo.
Ademais, a LOJA, a LPAC e a LVAIP estabelecem a faculdade de ser constituído um tribunal arbitral para o julgamento de questões que tenham por objecto contratos administrativos. Contudo, nenhuma destas Leis limita a competência para dirimir litígios emergentes dos contratos administrativos à arbitragem nacional. Pelo contrário, o artigo 214/1 da LPAC estabelece que “na convenção de arbitragem ou escrito posterior, até à aceitação do primeiro árbitro, podem as partes acordar sobre as regras do processo a observar na arbitragem, bem como sobre o lugar onde funciona o tribunal arbitral”.
Ou seja, o artigo 214/1 da LPAC dá liberdade às partes de escolher as regras do processo arbitral e o lugar da arbitragem, podendo, portanto, entre outras, escolher as regras de processo arbitral em vigor em instituições arbitrais internacionais e escolher que a arbitragem seja realizada num local que se situa fora do território nacional. Face a isto, considerando que o regime da Lei da Arbitragem aplica-se subsidiariamente ao regime da arbitragem administrativa, podemos inferir que estaríamos em face de uma arbitragem internacional, entre outros, se as partes num contrato administrativo definissem um local de arbitragem que se situasse fora do território nacional (artigos 5/1 e 52 da Lei da Arbitragem conjugado com o artigo 214/1 da LPAC).
b) Sistema normativo referente ao foro de resolução de litígios emergentes de contratos de empreitada e de consultoria de construção civil de natureza privada
Assumem natureza privada, os contratos de empreitada de obras particulares e os contratos de prestação de serviços promovidos por particulares na medida em que constituem acordos de vontades pelos quais são constituídas, modificadas ou extintas as relações jurídicas privadas (artigo 232º conjugado com o artigo 405º, ambos do CC).
Ao abrigo do artigo 74/1 do CPC, “a acção destinada a exigir o cumprimento de obrigações ou a indemnização pelo não cumprimento é proposta no tribunal do lugar em que, por lei ou convenção escrita, a respectiva obrigação devia ser cumprida”.
Portanto, o foro competente para dirimir litígios emergentes de contratos de natureza privada são os tribunais judiciais do lugar em que, por lei ou convenção escrita, deve ser cumprida a obrigação de deu origem ao litígio.
Ademais, ao abrigo da Lei da Arbitragem, as partes de um contrato de empreitada e de consultoria de construção civil de natureza privada podem submeter a solução dos litígios deles emergentes à arbitragem, mediante uma convenção expressa de arbitragem (artigo 4/1 da Lei da Arbitragem).
Conforme o estabelecido no artigo 52/1 da Lei de Arbitragem, a arbitragem, para além da natureza nacional, pode assumir a natureza internacional, quando: as partes numa convenção arbitral tiverem, no momento da conclusão dessa convenção, o seu domicílio comercial em países diferentes; ou se o lugar da arbitragem, fixado ou determinável de acordo com a convenção arbitral, ou o lugar onde deva ser executada uma parte substancial das obrigações resultantes da relação comercial ou lugar com o qual o objecto do litígio se ache mais estritamente conexo, estiverem situados fora do país ou países em que as partes têm o seu domicílio; as partes tiverem convencionado expressamente que o objecto da convenção de arbitragem tem conexões com mais de um país.
Pelo que, o regime de arbitragem acima referido, também, não limita a competência para dirimir litígios emergentes de contratos de empreitada e de consultoria de construção civil de natureza privada ao foro nacional ou interno.
II. A eficácia do limite de foro imposto pelo regulamento de exercício da actividade de empreiteiro e de consultor de construção civil
Ao analisarmos o limite de foro imposto pelo Regulamento de Exercício da Actividade de Empreiteiro e de Consultor de Construção Civil (REAECCC), no seu artigo 48/2, advém desde logo o problema da sua eficácia, na medida em que:
a) Tanto os litígios emergentes de contratos de empreitada e de contratos de consultoria de construção civil de natureza pública assim como os similares contratos de natureza privada podem ser dirimidos por meio da arbitragem internacional, conforme o já discutido acima.
b) Os dispositivos legais que estabelecem a faculdade de resolução de litígios emergentes de contratos de empreitada e de contratos de consultoria de construção civil de natureza pública assim como os similares contratos de natureza privada são leis em sentido formal e são hierarquicamente superiores ao dispositivo legal que aprova o REAECCC, que é um decreto do Conselho de Ministros.
c) Os dispositivos legais que estabelecem a faculdade de resolução de litígios emergentes de contratos de empreitada e de contratos de consultoria de construção civil de natureza pública assim com os similares contratos de natureza privada são leis processuais e são especiais em matéria de determinação do foro de resolução de litígios.
As leis em sentido formal prevalecem sobre os decretos do Conselho de Ministros e as leis especiais prevalecem sobre as leis gerais (artigo 142 da CRM[8] e artigo 7 do CC).
Com o efeito, consideramos que o artigo 48/2 do REAECCC é ineficaz em relação a arbitragem, na medida em que, conforme o discutido acima, a legislação vigente sobre a arbitragem estabelece a arbitragem internacional como um dos meios para dirimir litígios emergentes de contratos de empreitada e de contratos de consultoria de construção civil de natureza pública assim como de natureza privada.
Não obstante, para dissipar quaisquer dúvidas, por motivos de certeza e segurança jurídicas, recomendamos a revogação expressa do artigo 48/2 do REAECCC.
Conclusão
No nosso ordenamento jurídico, o sistema normativo referente a determinação do foro competente para a resolução de litígios de contratos de empreitada e de consultoria de construção civil de natureza pública e de natureza privada é composto, essencialmente, pelo CPC, LOJ, LPAC, LOJA, LVAIP e a Lei da Arbitragem.
Dos diplomas em referência, a Lei da Arbitragem e a LPAC (conjugada com a Lei de Arbitragem) estabelecem a faculdade de os litígios emergentes dos contratos de empreitada poderem ser dirimidos por meio da arbitragem internacional.
A LPAC e a Lei da Arbitragem são especiais e hierarquicamente superiores ao decreto que aprova o REAECCC.
Com o efeito, consideramos que o artigo 48/2 do REAECCC é ineficaz em relação a arbitragem, na medida em que, conforme o discutido acima, a legislação vigente sobre a arbitragem estabelece a arbitragem internacional como um dos meios para dirimir litígios emergentes de contratos de empreitada e de contratos de consultoria de construção civil de natureza pública e de natureza privada.
Não obstante, para dissipar quaisquer dúvidas, por motivos de certeza e segurança jurídicas, recomendamos a revogação expressa do artigo 48/2 do REAECCC.
[1] O Código Civil em vigor em Moçambique foi aprovado pelo Decreto-Lei nº 47344, de 25 de Novembro, do então Governo de Portugal e estendida a sua aplicabilidade a Moçambique através da Portaria nº 22869, de 4 de Setembro de 1967.
[2] Aprovado pelo Decreto-Lei nº 44129, de 28 de Dezembro de 1961, pelo então Governo de Portugal e estendida a sua aplicabilidade a Moçambique através da Portaria nº 19305, de 30 de Julho de 1962.
[3] Lei nº 24/2007, de 20 de Agosto, alterada pela Lei nº 24/2014, de 23 de Setembro, e pela Lei nº 11/2018 de 3 de Outubro.
[4] Lei nº 7/2014, de 28 de Fevereiro.
[5] Lei nº 7/2015, de 6 de Outubro.
[6] Lei nº 14/2011, de 10 de Agosto.
[7] Lei nº 11/99, de 8 de Julho.
[8] Constituição da República de Moçambique, com as alterações introduzidas pela Lei nº 1/2018, de 12 de Junho.